15 DE OUTUBRO – FESTA DE SANTA TERESA DE JESUS OU SANTA TERESA D’ÁVILA, REFORMADORA E FUNDADORA DO CARMELO DESCALÇO
“Sempre no céu, estás ouvindo, teu irmão, ou então sempre no inferno! Sempre, sempre!” Assim falava a seu irmãozinho uma menina que se tornou Santa Teresa. Liam juntos as vidas dos santos. Evocando a glória dos mártires, assaltou-a o ardente desejo de morrer como tinham morrido, a fim de gozar mais cedo, a felicidade eterna. “Sempre! Sempre” diziam um ao outro. Nessa época ainda havia na Espanha mouros ou sarracenos. As duas crianças imaginaram que o processo mais curto seria irem para às terras ocupadas pelos infiéis, mendigando, a fim de perecer nas suas mãos. Com efeito, certo dia fugiram de casa e iniciaram a jornada. Oravam a Deus, enquanto caminhavam, pedindo-lhe que cada vez mais os penetrasse com o seu santo amor, e para que aceitasse o sacrifício de suas vidas. Um dos tios das crianças encontrou-as fora dos limites da cidade e levou-as de volta para a casa. Vendo que não lhes era possível chegar ao martírio, Teresa e seu irmão resolveram viver como eremitas, e improvisaram pequenos ermitérios no jardim. Teresa dava todas as esmolas que podia; mas seus recursos eram pequenos. Aos doze anos, por ocasião da morte de sua mãe, prosternou-se desfeita, em lágrimas diante de uma imagem da Santa Virgem e suplicou-lhe que lhe servisse de mãe.
O fervor de Teresa amorteceu com a leitura de romances e com as conversas mantidas com uma parenta de espírito mundano. Seu pai, que era um excelente cristão, percebeu o fato, e resolveu interná-la por algum tempo num convento de religiosas. O bom exemplo despertou no coração da menina os primeiros sentimentos de piedade. Certas leituras piedosas, feitas por um de seus tios, santo homem, acresceram-lhe sensivelmente as boas disposições. Resolveu consagrar-se inteiramente a Deus e no ano de 1534 ingressou num mosteiro de Carmelitas. Foi provada por longas e pequenas moléstias, no meio das quais Deus a acumulou de inumeráveis graças. A Ordem do Carmo afastara-se da sua primitiva austeridade. Teresa recebeu a inspiração de levá-lo de volta à antiga regra. Por causa disso sofreu calúnias, perseguições e maus tratos. De tudo triunfou: sua reforma foi aplicada a um grande número de mosteiros, onde até os nossos dias produz incalculáveis frutos de santidade.
“Ou morrer, Senhor, ou sofrer, é tudo que vos imploro!” Era essa a prece de Santa Teresa. “Ou morrer para ver-vos, ou sofrer pelo, vosso serviço”. Compreendia que, depois da felicidade de ver Deus, não há outra maior do que sofrer por ele. Meu Deus, como ainda estou longe dessa perfeição do vosso amor!
Santa Teresa, em obediência a uma ordem de seu pai espiritual, escreveu a sua própria vida. É uma leitura das mais úteis e mais agradáveis às almas piedosas. Conta-nos, não apenas o que lhe aconteceu, as graças a ela concedidas por Deus, mas também nos ensina como devemos comportar-nos nas diversas fases da vida espiritual. Deus deu-lhe a graça de ver a santa humanidade de Nosso Senhor e a dos anjos bons. Também viu mais de uma vez os demônios que a atacavam.
“Estando um dia no oratório, relata ela, aparece-lhe o demônio sob uma forma horrível; e, como falou comigo, observei, sobretudo, como da pavorosa a sua boca. Dela saía uma grande chama sem mistura de sombra; e disse-me num tom que me fez tremer, que eu me escapara de suas mãos, mas que saberia reaver-me. Senti-me tremendamente amedrontada; fiz o sinal da cruz como pude, e ele desapareceu; mas tornou a voltar logo depois e eu não sabia como proceder; enfim, atirei água benta no lugar em que se encontrava e nunca mais ele retornou àquele mesmo lugar. Outra vez, atormentou-me durante cinco horas, com sofrimentos e dores tanto interiores como exteriores, tão terríveis que acreditei não resistir-lhes por muito tempo. As pessoas com quem me encontrava ficaram assustadas e, tal como eu, não sabiam onde estavam. Tenho o costume, nessas ocasiões, de pedir a Deus do fundo do meu coração que, se lhe aprouver prolongar a provação, então me dê forças para suportá-la; ou que, se for da sua vontade que eu permaneça no estado de provação, nele me deixe até o fim do mundo”.
“Sei por várias experiências que nada afugenta mais depressa os demônios do que a água benta; ela impede que retornem. O sinal da cruz afasta-os momentaneamente, mas depois voltam. Essa água deve, pois, possuir uma grande virtude; e aliviava-me muito, proporcionando-me um sensível e profundo conforto, embora eu não saiba explicar bem de que espécie é o prazer que sinto e que se difunde pela minha alma, fortalecendo-a. Não são coisas imaginárias, já experimentei esse prazer muitas vezes, e depois de ter feito muitas reflexões, parece-me que é como, se atormentada por um excessivo calor e extremamente sedenta, eu bebesse um grande copo de água fria que refrescasse o meu corpo inteiro, Reconheço, e com grande prazer, que nada há no que a Igreja ordena que não seja digno de admiração, pois bastam algumas palavras para imprimir tanta virtude à água, estabelecendo tão surpreendente diferença entre a que foi benta e a que não o foi. Como o tormento que eu suportava na ocasião a que me refiro não cessasse, disse às minhas irmãs que, caso não lhes temesse a zombaria, pedir-lhes-ia que me trouxessem água benta. Imediatamente foram buscá-la, e jogaram-na sobre mim, sem que me sentisse aliviada; porém, tendo eu mesma jogado a água no lugar onde estava presente aquele espírito infernal, ele fugiu no mesmo momento e encontrei-me livre de dor, mas tão cansada e abatida como se me tivessem dado várias pauladas1.
“Muito tempo depois, continua Santa Teresa, estando eu um dia em oração, pareceu-me durante um espaço de tempo que me encontrava no inferno, sem saber como fora levada para lá. Compreendi apenas que Deus desejava que eu visse o lugar preparado para mim pelos demônios e merecido pelos meus pecados. Durou muito pouco, a experiência; porém, por mais anos que eu viva, não creio que me seja possível apagar essa lembrança.
“A entrada deu-me a ideia de uma dessas pequenas ruas longas e estreitas, fechadas de um lado, como a de um forno muito baixo, muito apertado e escuro. O terreno pareceu-me forrado de lama muito suja, com um cheiro insuportável, e na qual se arrastavam répteis venenosos. No fundo dessa pequena rua havia um vão, em forma de nicho, cavado no muro, e no qual me vi estreitamente alojada; e, embora tudo o que acabo de descrever fosse ainda mais horrível na realidade, podia ser considerado agradável em comparação ao que sofri quando me encontrei naquela espécie de nicho. Era um tormento pavoroso e tudo quanto eu pudesse dizer não chegaria a expressar uma pequena parte do que sofri. Senti minha alma arder num fogo tão horrível que não saberia descrevê-lo, e nem mesmo imaginá-lo. Já experimentei dores das piores, segundo os médicos, que alguém possa suportar nesta vida, tanto com a contração dos nervos, como de várias outras maneiras, e com outros malefícios provocados pelos demônios; mas todas essas dores nada significam em comparação ao que então sofri, e mais o horror que me assaltava ao compreender que aquelas dores seriam eternas: e tudo isso ainda é pouco comparado à agonia em que a minha alma se debatia. Era como se a sufocassem, a estrangulassem; e eram tais a sua aflição e seu desespero, que debalde eu tentava dominá-los. É mal expressar-se dizer que era como se a dilacerassem continuamente, porque seria assim uma violência estranha para tirar-lhe a vida; ela como se ela se arrancasse a si mesma e se reduzisse a pedaços. Quanto ao fogo e ao desespero que avultavam sobre tantos e tão horríveis tormentos, confesso que ainda menos consigo descrevê-los. Não sabia quem me obrigava a suportá-los; mas sentia-me arder e ser cortada em mil pedaços, e pareciam-me as mais tremendas torturas jamais existentes.
“Naquele tétrico lugar não havia a menor esperança de consolo, nem mesmo espaço suficiente para alguém sentar-se ou deitar-se. Encontrava-me numa espécie de buraco cavado na parede; e aquelas horríveis paredes contrariamente à ordem da natureza, apertavam, e comprimiam o que encerravam. Tudo sufocava naquele lugar; as trevas são densas, sem o menor vislumbre de luz, e é incompreensível como, embora não haja a mínima claridade, possamos distinguir tudo quanto seja penoso ao olhar.
“Não aprouve a Nosso Senhor dar-me então um conhecimento mais amplo do inferno; porém, depois, em outras visões, fez-me ver castigos ainda mais terríveis para certos pecados; mas como eu não lhes sofria a dor, essas visões não me impressionaram tanto como a primeira, a que me refiro, na qual Nosso Senhor quis que eu experimentasse em espírito aqueles tormentos, de maneira tão real e tão autêntica como se o meu próprio corpo os padecesse; não podia compreender como isso se passava; mas bem compreendia que Deus me favorecia com uma grande graça, permitindo-me ver de que abismo a sua infinita misericórdia me arrancara. Pois tudo quanto até hoje vi ou ouvi contar, ou imaginei, difere tanto da verdade quanto uma cópia do original; e queimar neste mundo nada é comparado com queimar no outro mundo.
“Embora já se tenham passado cerca de seis anos sobre o acontecimento que acabo de relatar, ainda hoje me sinto tão aterrorizada ao descrevê-lo, que o meu sangue parece gelar-se nas veias. Assim, malgrado as dores e os males que me maltratam, não posso lembrar-me do que sofri naquela ocasião, sem que tudo que possamos suportar aqui na terra me pareça desprezível. Tenho a impressão de que nos queixamos sem motivo e considero uma das maiores graças que Deus me concedeu a terrível experiência que descrevi, quando pondero o quanto me foi útil, tanto para evitar que eu receie as aflições desta vida, como para obrigar-me a procurar suportá-las com paciência, e dar graças a Deus que, segundo espero, consentirá em livrar-me daqueles terríveis e torturantes castigos, cuja duração será eterna.
“Depois dessa visão, não há males, por maiores que sejam, que não me pareçam fáceis de suportar, comparados aos que então sofri; e muito me admira que, tendo lido antes tantos livros que falam das penas do inferno, não tenha ficado aterrorizada, imaginando-as tais como são, e que tenha podido encontrar prazer e repouso em coisas que me conduziriam a tão medonho precipício. Sede para sempre bendito, meu Deus por me terdes feito ver que me amáveis muito mais do que amo a mim mesma, livrando-me tantas vezes daquela horrível prisão na qual eu tornava a entrar contra a vossa vontade!
“Essa mesma visão causou-me a insuportável dor que sofro ao ver tantos luteranos, a quem o batismo tornara membros da Igreja, desgraçadamente se perderam; e minha paixão, pela salvação desses infelizes é tão violenta, que se tivesse várias vidas, creio que a todas daria de boa vontade para livrar uma só dessas almas de tão horríveis tormentos.
“Depois dessa visão, e de ter Deus se dignado a revelar-me outros segredos relativos à glória parada para os justos, e os castigos que os maus sofrerão, fui tocada pelo desejo de fazer penitência pelos meus pecados, a fim de poder esperar pelo gozo de tão grande ventura; e, nessa intenção, de fugir completamente ao mundo. Meu espírito não deixava de estar agitado, mas era uma agitação tão calma e agradável, que não me causava nenhuma inquietação. Era evidente que aquela agitação procedia de Deus, e que infundia à minha alma como que um novo calor, a fim de torná -la capaz de digerir alimentos mais sólidos do que aqueles com que até então se nutrira. Encontrando-me nessa disposição, pensava no que poderia fazer para servir a Deus; e pareceu-me que deveria começar por cumprir os deveres da minha vocação, observando minha regra o mais estritamente possível.2
Foi então que a Providência fê-la empreender a reforma do Carmelo, iniciando-a pelas Carmelitas e terminando pelos Carmelitas.
Foi durante os quatro primeiros anos desse empreendimento que, em obediência às ordens do confessor, e a pedido de suas religiosas do primeiro mosteiro reformado, ela escreveu O Caminho da Perfeição, para ajudar as almas fervorosas a evitarem certos defeitos e a vencer certas tentações, que muitas vezes as detêm ou retardam no caminho da perfeição religiosa. No primeiro capítulo, expõe as razões que a levaram a estabelecer uma rigorosa observação no mosteiro de São José de Ávila, explicando que não lhe cabe o menor merecimento naquela iniciativa. A França católica ficará impressionada com tais razões: verificará, talvez com piedosa surpresa que deve sua salvação a Santa Teresa.
“Tendo tido conhecimento das perturbações que abalavam a França, dos estragos provocados pelos heréticos, e de como aquela desgraçada seita se fortalecia dia a dia, tão vivamente impressionada fiquei que, como se tivesse podido fazer alguma coisa, ou como se fosse responsável por alguma coisa, chorei na presença de Deus, e supliquei-lhe desse remédio a tão grande mal. Parecia-me que daria mil vidas para salvar uma única das numerosas almas que se perdiam naquele reino. Vendo, porém, que não passava de uma mulher e, além disso, imperfeita e incapaz de prestar a meu Deus o serviço que desejaria, acreditei, como ainda acredito que, tendo ele tantos inimigos e tão, poucos amigos, eu deveria usar de todos meus recursos para conseguir que os últimos fossem bons.
“Desse modo, resolvi fazer tudo que de mim dependia para pôr em prática, com a maior perfeição possível, os conselhos evangélicos, e procurar fazer com que esse punhado de religiosas aqui presentes procedesse da mesma forma. Nessa intenção, confiei-me à imensa bondade de Deus, que nunca se nega a atender aos que a tudo renunciam por seu amor esperei que, em sendo aquelas boas criaturas tais como meu coração as imaginava, meus defeitos seriam ocultos pelas suas virtudes, e acreditei que de algum modo poderíamos contentar Deus, ocupando-nos com rezar pelos pregadores, pelos defensores da Igreja, e por todos os homens sábios que advogam as causas desta última, pois assim faríamos o que estivesse em nosso poder para auxiliar nosso Mestre, a quem esses traidores que lhe devem tantos benefícios tratam tão indignamente, tal como se pretendessem crucificá-lo de novo, não lhe deixando o menor lugar onde possa repousar a cabeça.3
De tal forma estava Santa Teresa embebida nessa caridade apostólica que traça um capítulo inteiro, no qual procura a ela conduzir progressivamente as suas religiosas: “Para voltar ao principal assunto, que nos reuniu nesta casa, e a favor do qual eu desejaria pudéssemos fazer alguma coisa agradável a Deus, digo-vos que, vendo que a heresia surgida neste século é igual a um fogo devorador, sempre em progresso, ao qual os homens não conseguem conter, deveríamos, na minha opinião, agir como faria um príncipe que, vendo os inimigos lhe devastarem o reino, e não se julgando bastante forte para enfrentá-los, em luta, se retirasse com algumas tropas escolhidas para um lugar por ele poderosamente fortificado; desse lugar, desfecharia pequenos ataques contra os inimigos, ataques que os prejudicariam muito mais do, que poderiam fazê-lo tropas consideráveis, porém mal preparadas; pois acontece muitas vezes ser possível obter a vitória com esse meio; e, no pior dos casos, só pereceriam pela fome, pois não existem traidores entre guerreiros dessa categoria. Ora, minhas irmãs, aqui a fome pode atormentar-nos, mas não forçar a que nos entreguemos.
“Ora, para que vos digo essas coisas? Para dar-vos a conhecer que devemos pedir a Deus que se digne permitir que neste lugar, para o qual os bons se retiraram, não seja encontrado nem um só capaz de colocar-se do lado dos inimigos; que fortaleça a virtude e a coragem dos pregadores e dos teólogos que são como que os chefes de suas tropas, e faça com que os religiosos, que compõem a maioria dos soldados, avancem dia a dia na perfeição reclamada por tão santa vocação: isso é o mais importante de tudo, pois é das forças eclesiásticas, e não das seculares, que devemos esperar auxílio.
“Já que somos incapazes de, nesta circunstância, prestar serviços ao nosso rei, esforcemo-nos pelo menos para nos mostrar tais que as nossas orações possam ajudar os servos que, não tendo menos doutrina que virtude, com tanta coragem trabalham a seu serviço. Se me perguntardes por que insisto de tal forma neste assunto, e vos exorto a ajudardes os que nos são muito superiores, responderei que é por acreditar que não compreendestes suficientemente qual a vossa obrigação para com Deus, por ter ele vos conduzido a um lugar, no qual permaneceis livres dos negócios, dos compromissos, e das palestras mundanas. Esse favor é bem maior do que o imaginais, e aqueles de que vos falo estão longe de desfrutá-lo. Nem seria oportuno que desfrutassem, principalmente neste momento, pois lhes cabe fortalecer os fracos e animar os tímidos; pois, de que serviriam soldados que não tivessem capitães? É preciso, pois, que vivam entre os homens, e que ao entrar no palácio dos grandes e dos reis, pareçam algumas vezes, no que se refere ao exterior semelhantes aos outros homens.”4
Nessa obra, Teresa faz ver, entre outras coisas, quão importante é que os confessores sejam sábios, e quais os casos em que as religiosas podem ou devem trocá-los.5 Do capítulo décimo sexto ao quadragésimo, ela fala da oração, e termina com meditações muito belas sobre a Oração dominical. No capítulo dezenove, ensina-nos que a união da alma com Deus pode tornar-se tão íntima a ponto de separar a alma do corpo. Como já dissemos, é morrer, não de morte, mas de vida. Eis as palavras de Santa Teresa: “Entre as propriedades da água, lembro-me de três que se referem ao meu assunto. A primeira é refrescar… A segunda é remover as impurezas… A terceira é mitigar a sede. Ora, na minha opinião, a sede não passa de desejo de uma coisa, de que sentimos tão grande necessidade, que não poderíamos, sem morrer, dela ficar inteiramente privados. E, decerto, é estranho que seja a água de tal natureza, que sua carência nos cause a morte, e sua excessiva abundância nos tire a vida, como vemos pelos que se afogam. – Ó meu Salvador! Quem seria bastante feliz para submergir nessa água viva a ponto de perder a vida? Não é coisa impossível, porque nosso amor a Deus e o desejo de possuí-lo podem crescer tanto que nosso corpo não possa suportá-lo; e já houve pessoas que morreram dessa maneira. Conheço uma a quem Nosso Senhor dava tão grande quantidade dessa água que, se não a tivesse socorrido a tempo, os êxtases em que caía quase a teriam feito sair do seu próprio corpo. Digo que quase teria saído do seu corpo, porque a enorme dor que suportar o mundo lhe causava quase a fazia morrer; parecia-lhe, ao mesmo tempo, que ressuscitava em Deus num surpreendente repouso, e que sua divina majestade, arrebatando-a, a tornaria apta a uma felicidade, cujo gozo lhe custaria a perda da vida, caso permanecesse em si mesma.6
Depois de ter explorado O Caminho da Perfeição, Santa Teresa chega ao palácio para o qual esse caminho conduz. Daí outra obra, O Castelo da Alma, cuja finalidade também aponta.
“Entre as coisas que a obediência me obriga a fazer, poucas há sobre as quais me tenha parecido tão difícil escrever como a oração, seja por não ter Nosso Senhor me dado bastante espírito para bem desempenhar a tarefa, seja porque não tenha o desejo de empreendê-la, seja porque sinto há três meses um ruído contínuo na cabeça, e uma fraqueza tão grande, que não poderia, a não ser muito penosamente, escrever para tratar de negócios importantes e urgentes. Mas como sei que a obediência pode tornar possível o que nos parece impossível, resolvo-me a fazê-lo alegremente, malgrado a resistência da natureza, que confesso, a isso se opõe, porque não possuo suficiente virtude para suportar doenças contínuas, e, ao mesmo tempo, sobrecarregar-lhe com centenas de ocupações de toda espécie. Assim sendo, é unicamente da bondade de Deus que espero a mesma assistência que me prestou em ocasiões ainda mais difíceis.
“Não vejo o que poderia acrescentar ao que já escrevi no tocante à oração para satisfazer à ordem recebida, e receio que tudo quanto eu disser sobre o tema seja a repetição do que já disse. Sou como esses pássaros a quem ensinam a falar e que, apenas sabendo o que lhes é ensinado, redizem sempre as mesmas palavras. Se a Nosso Senhor aprouver que eu acrescente alguma coisa, ele me inspirará, ou fará voltar à minha memória o que já escrevi. Não será pouco para mim, porque a minha memória é tão deficiente, que me consideraria feliz se me lembrasse de certas passagens das quais diziam não serem más, no caso em que não existam cópias. Mas mesmo que não recebesse essa graça, e depois de ter-me inutilmente atormentado para escrever coisas que não poderiam dar proveito a ninguém, e nada tendo feito a não ser aumentar minha dor de cabeça, não deixaria de tirar grande proveito, pois teria satisfeito à obediência.
“Dou início, pois, neste dia da Santíssima Trindade do ano de 1577, no Mosteiro de São José de Toledo, onde me encontro presentemente. Submeto tudo quanto disser ao julgamento daqueles que me ordenaram a escrever, e que são pessoas muito esclarecidas; e, se eu afirmar alguma coisa que não esteia conforme à crença da Igreja Romana, não o terei feito de propósito mas por ignorância, pois sempre fui e sempre serei, com a graça de Deus, inteiramente submissa a essa esposa de Jesus Cristo. Seja ele para sempre louvado e glorificado! Assim seja.
“Já que os que me mandaram escrever disseram que, tendo as religiosas da nossa ordem necessidade de serem esclarecidas em algumas dúvidas relativas à oração, acreditam que elas ouvirão melhor a linguagem de uma mulher, e que a afeição que me consagram lhes fará tirar mais proveito, dedico-lhes este trabalho, que só poderia parecer extravagante ao espírito de pessoas estranhas. Deus conceder-me-á uma grande graça se as minhas palavras contribuírem para que algumas das religiosas melhor o louvarem, e ele bem sabe que é tudo quanto desejo. Se eu for feliz em algumas passagens, não devem atribuir-me o mérito, pois não sou capaz de falar sobre assuntos tão elevados, e para isso só tenho a inteligência que aprouve Deus conceder-me por efeito da sua bondade, da qual sou indigna.”
Depois desse prólogo, a Santa entra no assunto: “Quando eu rogava a Deus que me inspirasse o que deveria escrever, veio-me à ideia que é sobre a base deste trabalho que convém falar. Devemos considerar nossa alma como se fosse um castelo construído com um único diamante ou cristal magnífico, no qual, como no céu, há várias moradas. Pois se ponderarmos bem, minhas irmãs, a alma do justo é um verdadeiro paraíso, onde Deus, que nele reina, encontra suas delícias. Qual deve ser a beleza dessa alma para que um monarca tão poderoso, tão sábio, tão rico e tão magnificente se compraza em escolhê-la para morada! Nada vejo na terra a que possa compará-la. E como o espírito mais elevado seria capaz de compreender todas as suas perfeições, até que Deus, que é incompreensível, disse com sua própria boca que a criou à sua imagem, e lhe imprimiu a sua semelhança?
“Devemos, pois, considerar que esse castelo encerra várias moradas; umas em cima, outras em baixo, outras dos lados, e uma no meio, que é como que o centro e a mais importante de todas, e na qual se passa o que há de mais secreto entre Deus e a alma. – A porta de entrada desse castelo é a oração. – A primeira morada é o conhecimento de si mesmo e de Deus. – A segunda a renúncia às ocupações não necessárias. A terceira o temor de Deus. – A quarta o recolhimento sobrenatural, oração de quietude. – A quinta a oração de união som Deus, cuja prova é o amor ao próximo. – A sexta a oração do amor e do êxtase”. Santa Teresa faz sobre o tema as seguintes reflexões, que demonstram como estava afastada dos falsos místicos, antigos e modernos.
“Parecer-vos-á, talvez, minhas filhas, que, quando somos favorecidos por graças tão sublimes, ninguém se detém para meditar nos mistérios da mui sagrada humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque só pensamos em amá-lo. Tratei amplamente desse assunto em outro lugar. Embora não tenham ficado de acordo com o que disse, e tenham querido fazer-me acreditar que é mais vantajoso a uma alma muito adiantada ocupar-se com o que se relaciona com a Divindade e de nada mais de corporal cuidar, nunca me convencerão da necessidade de enveredar por esse caminho. Pode suceder que me engane, e que só seria preciso que nos compreendêssemos bem para entrarmos em acordo; mas percebi que o diabo me queria iludir mostrando-me esse caminho; e a experiência que tive faz-me repetir o que já disse tantas vezes, isto é, que em tal assunto é preciso conservar-se sempre na defesa. Ouso mesmo acrescentar que, seja quem for que vos afirme o contrário, não deveis acreditá-lo. Procurarei fazer-me compreender melhor aqui do que o fiz alhures porque, se alguém já escreveu sobre o assunto, talvez não se tenha explicado bem, e é muito perigoso tratar superficialmente coisas de tão difícil compreensão.
“Outras pessoas imaginarão que não é preciso pensar na paixão de Nosso Senhor, e ainda menos na Santíssima Virgem, e nos atos dos santos, embora isso possa ser-nos útil e estimular-nos a bem servir a Deus. Confesso não chegar a compreender em que pensam, assim procurando desviar nossos olhos de todos os objetos corporais; tal se fôssemos anjos sempre abrasados de amor, e não criaturas ligadas a um corpo mortal, o que nos faz imaginar as ações heroicas praticadas pelos grandes santos no serviço de Deus, quando ainda se encontravam na terra como nos encontramos agora; enquanto, proceder de outra forma, seria privar-nos voluntariamente do soberano remédio de nossos males, que é a mui sagrada humanidade de Nosso Senhor, na qual repousa toda a nossa esperança. Na verdade, não acreditaria que as referidas pessoas tenham conseguido entrar nas últimas moradas porque, não tendo mais por guia a Jesus Cristo, que é o único que lá pode conduzi-las, não saberiam encontrar o caminho. Seria muito se permanecessem em segurança nas primeiras moradas. Pois não disse eIe pela sua própria boca: que é o caminho da luz; que só por ele chegaremos a seu Pai; que quem ouvir, verá seu pai? E se disserem que essas palavras não devem ser compreendidas de tal maneira, repito que jamais lhes dei outro sentido; que esse me parece o verdadeiro, e que muito lucrei por havê-lo admitido.
“Conheci algumas pessoas que, após havê-las Deus elevado a uma contemplação perfeita, desejariam permanecer sempre nesse estado; mas não é possível, e acontece que, assim procedendo, não poderiam meditar sobre os mistérios da vida e da paixão de Cristo, como faziam antes. Não sei qual é a causa; sei apenas que é muito comum ter a sua mente assim permanecido incapaz de meditar. Na minha opinião, deriva o fato de que, sendo a procura de Deus o objetivo proposto na meditação, depois de o ter a alma encontrado, acostuma-se a só procurá-lo através de uma operação da vontade, e esta sendo a mais generosa das faculdades, quereria, o seu grande amor a Deus, dispensar o entendimento; mas não pode fazê-lo antes de chegar às últimas moradas porque tem necessidade dele para inflamar-se.
A sétima e última morada é a união de Deus com a alma, como a do esposo com a esposa, de maneira a que Jesus Cristo viva nela e ela em Jesus Cristo; e que a Santa Trindade a ela se manifeste, sem que lhe seja possível nem ao menos assegurar-se de não estar caindo em pecado. Santa Teresa ainda se ocupa dessa última morada numa espécie de comentário sobre o Cântico dos Cânticos, que também parece um comentário a esta palavra do Salvador: Quem comer minha carne e beber o meu sangue permanecerá comigo, e eu com ele.
A Espanha era nesse tempo uma terra abençoada que não cessava de produzir santos e santas. Os principais cooperadores de Santa Teresa eram São João da Cruz e São Pedro de Alcântara. E, o que fala a favor da nação espanhola, o povo amava e venerava esses santos e santas. Assim, informados do rumo de Santa Teresa nas suas frequentes viagens, os moradores do campo postavam-se nos caminhos para vê-la passar e pedir-lhe a bênção. A notícia da sua chegada precedia-a de um lugar a outro, e a honra de hospedá-la era disputada. Aquela solicitude confundia-a; gostaria de poder subtrair-se a seus efeitos. Certa vez, tendo-lhe as demonstrações de veneração que lhe tributavam parecido mais insuportáveis do que o frio e a escuridão da noite, partiu três ou quatro horas antes do nascer do sol, do povoado para o qual afluíra uma enorme quantidade de pessoas, que já a recebera com aclamações e que se dispunha a acompanhá-la triunfalmente.
Outra vez, pois, não pôde deixar de sensibilizar-se diante do que um camponês fez para festejá-la. Pois, inteirado de que ela deveria passar pela aldeia onde morava, mandou preparar-lhe o melhor jantar possível; reuniu toda a família em casa, e mandou trazer seus rebanhos, a fim de que tudo quanto lhe pertencesse fosse abençoado pela Santa. Porém, como Teresa não consentisse em interromper a viagem, o camponês acompanhado por filhos e rebanhos, foi-lhe ao encontro. Aquele ato a enterneceu e ela recomendou ao Senhor a família inteira.7
Às fadigas das viagens, juntavam-se graves enfermidades; mas a coragem de Teresa tudo a fazia suportar alegremente. Precisou recorrer àquela fôrça de alma que lhe era própria quando repuseram seu braço esquerdo no lugar, causando-lhe dores tremendas. Duas vezes aquele braço fora quebrado; a primeira em Ávila, em 1578; a outra em Vila-Nova de Xare, em 1580. Ficou, mesmo, aleijada o resto da vida em consequência do primeiro acidente, fruto de uma desastrosa queda de escada. Levaram muito tempo à procura de uma pessoa capaz de atender à fratura; e, quando a prioresa de Medina lhe enviou uma mulher com prática daquele gênero de operações, o braço já estava ligado.
Teresa terminara, em 1582, de fundar o convento de Burgos e já se pusera a caminho de Ávila quando recebeu um convite bastante insistente da Duquesa de AIba, que lhe pedia o favor de ir vê-la de passagem. Embora estivesse às voltas com suas velhas enfermidades, e atacada por uma espécie de paralisia, aliada a frequentes vômitos, a Santa apresentou-se em Alba no dia 20 de setembro, acompanhada pelo padre Antônio de Jesus, que fora buscá-la em Medina. Passou várias horas conversando, com a duquesa e, em seguida, deixou-a para acolher-se ao convento da sua ordem. Sentia-se extremamente fatigada, e como seus males piorassem dia a dia, compreendeu que seu fim estava próximo. No dia 30 de setembro teve um fluxo de sangue acompanhado de sintomas inquietantes. Contudo, ainda assistiu à missa aquele dia e comungou com grande fervor. Daí por diante permaneceu na cama até à morte. A Duquesa de Alba visitava-a com frequência e servia-a com a mais terna afeição. A irmã Ana de Saint-Barthélemy, sua querida companheira, que mais tarde fundou um dos primeiros conventos das Carmelitas da França, não a deixava nem de dia e nem de noite.
No dia 1º de outubro, depois de ter passado quase toda a noite em oração, Teresa mandou chamar o padre Antônio de Jesus pois desejava confessar-se. Terminada a confissão, o santo religioso exortou-a a pedir ao Senhor que não a tirasse ainda do mundo. Teresa respondeu humildemente que não podia mais ter serventia na terra; em seguida, despediu-se de suas religiosas, dando-lhes contínuas provas de afeição com seus últimos conselhos embebidos de carinho. Dizia-lhes: “Conjuro-vos, pelo amor de Deus, que observeis estritamente a regra e as constituições e não escolhais como modelo esta indigna pecadora que vai morrer. Cuidai, de preferência, de perdoar-lhe.” Desfeitas em lágrimas, as irmãs só lhe respondiam com soluços.
No terceiro dia de outubro, Teresa sentiu-se mais fraca do que nunca; pediu os sacramentos, que lhe foram levados. Assim que avistou o santo viático, suas forças como que se reanimaram; o rosto iluminou-se, e o ardor da fé transpareceu-lhe nos olhos. Voltou-se para Jesus Cristo e, tendo sentado para recebê-lo mais respeitosamente, exclamou num santo transporte; “Ó meu Senhor e meu Esposo, eis que se aproxima a hora tão ardentemente desejada! Aproxima-se o momento da minha libertação… Seja feita a vossa vontade! Chegou a hora em que deixarei meu exílio, e na qual minha alma encontrará na vossa presença a felicidade pela qual suspira há tanto tempo!”
Às nove horas da noite, pediu a Extrema-Unção, que recebeu com grande piedade. Pouco depois, tendo-lhe o padre Antônio perguntado se desejava ser enterrada no Convento de Ávila, respondeu-lhe: “Como! Não há nada neste mundo que me pertença? E não me darão aqui um pedaço de terra?” Seu fervor recrudescia, à medida que as forças a abandonavam. Ouviram-na repetir muitas vezes os versetos do salmo Miserere e, sobretudo, o seguinte: Meu Deus, não rejeitareis um coração contrito e humilhado. Recitou-o até o momento em que perdeu o uso da palavra. As dores da sua agonia prolongaram-se até a manhã seguinte. Sucumbindo, então, ao peso dos males, inclinou a cabeça no braço da Irmã Ana de saint-Barthétremy, e permaneceu .calmamente nessa posição até às nove horas da noite, com os olhos fitos num crucifixo que tinha na mão. O sono dos justos coroou seus trabalhos e suas virtudes na noite de 4 a 5 de outubro de I582. Foi nessa mesma noite que Gregório XII reformou o calendário, inesperadamente suprimindo dez dias; e por efeito dessa supressão, o dia que se seguiu à morte de Santa Teresa ficou sendo considerado 15 de outubro, embora fosse apenas o dia 5.
A Santa morreu com sessenta e oito anos de idade, depois de ter passado vinte e sete no Convento da Encarnação, e mais vinte nos diversos conventos reformados. Os sofrimentos da morte não ficaram impressos na sua fronte; ao contrário, as rugas da velhice desapareceram-lhe do rosto e os membros conservaram a mesma flexibilidade que possuíam em vida. Seu corpo foi sepultado no coro interno das Carmelitas de Alba, onde permaneceu até 1585, quando o Capítulo Geral dos Carmelitas Descalços mandou trasladá-lo para o Convento de São José de Ávila, sede da reforma. Essa trasladação não foi processada com a discrição necessária para que a família do Duque de Alba dela não tivesse notícia. Queixou-se a Roma, pois, e obteve, no ano seguinte, uma ordem do Papa, na qual ele mandava restituir ao Convento de Alba os despojos mortais da sua santa fundadora. Foram eles levados para lá no dia 25 de abril de 1586, e ainda hoje se conservam no mesmo lugar, sob um belo mausoléu. Até mesmo a corrupção respeitou as relíquias da Santa. As verificações levadas a efeito por ocasião dessa dupla mudança deram a conhecer o prodígio. O corpo foi encontrado em perfeito estado, tão flexível e tão perfeito como no momento da morte de Teresa; e asseguram que ainda se conserva no mesmo estado.
Nada há de mais autêntico do que os atos preparados para servir de base à canonização de Santa Teresa. Foram assinados por uma grande quantidade de pessoas respeitáveis, cuja maior parte testemunhara os fatos que atestava. Paulo V determinou ao Arcebispo de Toledo, aos Bispos de Ávila e de Salamanca, que fizessem investigações nos próprios lugares onde os fatos tinham ocorrido. Feitas as averiguações, o processo verbal foi enviado a Roma, onde três editores, cuidadosamente escolhidos, discutiram todos os fatos nele relatados, antes que os Cardeais da Congregação dos Ritos os submetessem a novo exame. Tendo Paulo V falecido, sucedeu-lhe Gregório XI; e este, após os sufrágios unânimes de todos os consultores, autorizou o culto prestado a Santa Teresa, por uma bula, no mês de março de 1621. Os atos da canonização contêm com pormenores os vários milagres operados pela virtude das relíquias da Santa, ou por sua intercessão. O santo Bispo de Taronha, Didaco Yepez, inseriu a relação desses milagres no seu trabalho sobre a Santa.8
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1 C. XXXI.
2 C. XXXII
3 O Caminho de Perfeição, c. I.
4 C. III.
5 C. IV e V.
6 C. XIX.
7 Vida de Santa Teresa, por Villefore, l. V.
8 Acta SS., e Godescard, 15 de octob.
(Fonte: in, Vida dos Santos, Editora das Américas, Vol. XVIII, Padre Rohrbacher, 1959, pp. 192-215 – Texto revisto e atualizado)