9 DE MARÇO – DIA DE SANTA FRANCISCA ROMANA
A DAMA ROMANA
Nasceu em Roma, em 1384, filha de Paulo Buxo e de Giacomina Rofredeschi, duas famílias muito distintas. No batismo recebeu o nome de Francisca. Desde a mais tenra idade deu mostras impressionantes de pudor virginal, chorando quando não se encontrava bem coberta e sofrendo quando era tocada por um homem, ainda que este fosse seu pai. Ao aprender a falar, aprendeu como primeira coisa o ofício da Santa Virgem. Calma, humilde e dócil, era criança pela idade, matrona pelo comportamento. Não brincava com nada que fosse pueril, não procurava saber nem contar as novidades. Retirada dentro da casa, evitava conversar com homens, a fim de gozar mais comodamente do colóquio com Deus. Com os olhos sempre modestamente baixados, jamais se afastava da presença de Deus e dos anjos. O tempo que lhe restava do trabalho e da oração, ela o empregava na leitura de virgens, tornadas célebres pela santidade, no desejo de imitar-lhes o exemplo. Não é de se estranhar que os vizinhos não a conhecessem, se para os da casa ela era difícil de ser vista. Desde cedo fazia o exame de todas as ações e expiava com severa penitência o que acreditava ter manchado com pecado. Era maravilhoso ver com que respeito e submissão obedecia ao confessor. Não existia senão um ponto em que era importuna: queria que lhe permitisse mortificar o corpo com penitências que exigiam idade mais avançada. Mais de uma vez foi necessário aceder-lhe aos desejos. Deus quis desde cedo formar na mortificação aquela que destinava a uma santidade tão elevada.
Vivendo assim, como reclusa, Francisca alimentava no espírito o desejo de guardar a virgindade e de consagrá-la a Deus, em algum convento. O confessor lhe aconselhou pensar nisso maduramente, examinar os prós e os contra de cada estado, e experimentar suas forças por alguma austeridade secreta. Ela obedeceu. Dia a dia, porém, fortificava-se em sua resolução. Falou com os pais que já, então, desconfiavam de alguma coisa. Estes não consentiram e como já tivesse passado dos doze anos, pensaram imediatamente em casá-la. Por ordens formais do pai, resignou-se, obediente, e após verter copioso pranto, desposou Lourenço de Ponzanis, jovem romano, cuja fortuna igualava-se com a descendência.
Pouco após as bodas, caiu gravemente enferma. Tornava-se pior dia a dia. Os médicos não encontravam remédio para curá-la. O pai se afligia ainda mais, pois considerava a doença da filha uma punição do céu, dado que se recusara a conceder-lhe permissão para abraçar a vida religiosa. Algumas pessoas ousaram esperar que sarasse por sortilégios. Francisca, todavia, protestou constantemente, dizendo que preferia morrer a ofender a Deus por meio de alguma superstição. Sem nenhum socorro de médicos, recuperou a saúde, em parte. Mas, recaiu algum tempo depois, ficando perto de um ano tão doente, que não podia mexer-se na cama, nem reter no estômago alimento algum, o que lhe causava grandes dores, como também aos seus, que esperavam cada dia que morresse. Uma mulher curandeira se apresentou a ela, para curá-la. Mas, foi de tal modo recebida, que deu-se por feliz em escapar da casa sem receber algumas pancadas. Era a véspera de Santo Aleixo, 17 de julho de l398, o décimo-quarto ano de Francisca. Noite alta, todos dormiam profundamente, inclusive os enfermeiros. Francisca não dormia, pensando em Deus. Repentinamente, o quarto se iluminou com uma luz extraordinária. Santo Aleixo apareceu radiante de glória. Diz quem é e anuncia que Deus o enviara para curá-la. Coloca o manto de ouro sobre a doente e lhe restitui perfeita saúde. Francisca imediatamente se levantou, bem disposta, foi procurar sua amiga de infância, sua cunhada Vannozia ou Ziametta, que acabara de dormir e lhe conta o milagre e a convida a agradecer a Deus na igreja vizinha, o que ambas fizeram com indescritível devoção. Voltando à casa, Francisca foi recebida por toda a família como pessoa ressuscitada de entre os mortos. Toda Roma se encheu de admiração com o acontecimento.
Voltada das portas da morte, Francisca se aplicou com ardor maior do que antes, a todas as obras de piedade. O desejo da vida solitária se renovou no coração, a fim de entregar-se toda a Deus. Vannozia, em chegando, encontrou-a completamente absorta nessas reflexões. Após explicações, Vannozia entendeu as ideias de Francisca, expondo-lhe também seus propósitos. Mas, como poderiam executá-los, se ambas eram casadas? No alto da casa, não ia ninguém. La construíram um pequeno oratório. Na extremidade do jardim, antigas ruínas formavam uma espécie de gruta. Todo o tempo disponível passavam-no rezando na gruta, durante o dia e no oratório durante a noite. Um dia, estando na gruta, perguntaram-Se o que fariam se Deus lhes concedessem a graça de viverem como ermitoas. Francisca, que amava a abstinência, bem como o jejum, respondeu: “Quando estivermos no deserto, iremos procurar frutas para nosso sustento”. No mesmo instante, ouviram cair duas maçãs de uma árvore ao lado, embora estivessem no mês de abril. Admiraram a bondade do Pai celeste que se dignava, dessa forma, aprovar-lhe os seus propósitos. Uma das maçãs comeram-na ambas, fazendo em seguida ação de graças. Outra, dividiram-na entre os criados, que ficaram maravilhados.
Na época do casamento, Francisca tinha ainda pai e mãe. Além deles, viviam na casa, seu esposo Lourenço, o sogro Andreósio e a sogra Cecília, com o cunhado Paolúcio, esposo de Vannozia. Todos formavam uma só família. Com a morte do sogro, pouco tempo depois, a administração doméstica coube a ela e a Vannozia. Esta, conhecendo-lhe a prudência, referia-lhe tudo. Nunca houve entre ambas a menor discussão. Apesar de todas as ocupações, Francisca não era menos fiel aos exercícios de piedade do que antes. Duas vezes por semana se aproximava do sacramento da penitência, recebia a comunhão em todas as grandes festas e recitava em casa o ofício da Santa Virgem.
O resto do tempo ela o empregava no cuidado da família. Lourenço bem logo viu que poderia gozar de dias tranquilos, com a esposa que Deus lhe dera. Embora o número de criados, tanto de homens como de mulheres, fosse considerável, ela os tratava como irmãos e irmãs. Exortava-os a viver no temor de Deus, dava-lhes exemplo de paz doméstica, pedindo perdão, com toda a humildade, quando pensava ter ofendido alguém. Mas quando via levantarem-se discussões ou surgirem ocasiões de ofender a Deus, sempre conservando no coração a doçura habitual, patenteava um zelo ardente e reprimia com grande liberdade o que via iria ofender a Deus e escandalizar o próximo. Um dia, encontravam-se vários nobres jantando em sua casa. Um deles entregou a Lourenço um livro de magia. Imediatamente, tomou-lhe o livro das mãos e atirou-o ao fogo, apesar de ele a censurar por isso.
Caísse alguém da família doente e Francisca procurava tudo quanto pudesse curá-lo e servia-o ela mesma com grande dedicação e caridade. Vannozia, atacada de doença grave, perdeu o apetite por toda espécie de alimento. Francisca conjurou-a dizer-lhe se desejava alguma coisa. Esta lhe respondeu que queria comer um caranguejo de rio. Fizeram o possível, mas não encontraram nenhum. Estavam todos penalizados, quando viram cair sobre a mesa um grande caranguejo. Cozeram-no e levaram-no para ela comê-lo. Desapareceu o desgosto de Vannozia, que ficou curada.
Vendo como sua casa era rica, Francisca proibiu que qualquer pobre que lá fosse mendigar, saísse sem nada. Um ano de carestia fez com que se multiplicasse em Roma a indigência e as doenças. Francisca ampliou a ação caritativa. Dava esmolas aos que lhe pediam e, mais, mandava levá-la aos que não lhe podiam vir. Deus manifestou por um milagre, verificado nos processos autênticos, como essa caridade lhe era agradável. Quanto mais a penúria aumentava, mais Francisca multiplicava as esmolas. Eram tantas, que não podemos imaginá-las. Paolúcio e Lourenço, temendo que a liberalidade das mulheres lhes trouxessem prejuízos, tiraram-lhes as chaves do celeiro, que estava cheio, colocaram em reserva o que era necessário à família, os criados, e venderam o resto, deixando o celeiro vazio. Francisca disse, em seguida a Vannozia: “Vamos ao celeiro, ajuntar o que resta para os pobres”. Não encontraram senão palhas miúdas, que ajuntaram com as vassouras. Passando tudo pela peneira, obtiveram um punhado de trigo, que distribuíram entre os pobres. Isto feito, Vannozia saiu do celeiro, e Clara, sua criada, fechou-o com chave. Alguns dias depois, os dois maridos foram lá e encontraram quarenta medidas do melhor trigo. Cheios de admiração, contaram o fato ao sogro, que quis ver pessoalmente o que diziam e reconheceu nisso obra de Deus, que aprovava e recompensava a caridade de Francisca.
Outra vez, como o vinho estivesse escasseando, Andreósio e seus dois filhos colocaram à parte um tonel do melhor para a família. Os pobres, todavia, conhecendo a caridade de Francisca, vinham pedir-lhe um pouco de vinho para os doentes. Ela mandou que Clara fosse buscar um pouco. Esta atendeu. Pouco depois, o barril estava completamente vazio. Andreósio e os filhos, quando se aperceberam disso, puseram-se a gritar, encolerizados, contra Francisca e Vannozia, dado que para eles não restara nem uma gota de vinho. Francisca lhes disse sorrindo: “Deixem-nos descer à adega e com a graça de Deus lhes serviremos abundantemente do vinho que desejam”. Desceram ambas com Clara, encontraram o tonel, retiraram-lhe excelente vinho e levaram-no para o sogro e maridos, dizendo: eis aqui o vinho em questão. Graças a Deus, o tonel ainda está cheio. O velho experimentou e também seus filhos. Não podendo acreditar no paladar, desceram à adega e encontraram o tonel cheio. Desde então, deixaram plena liberdade às mulheres para administrarem tudo como julgassem apropriado. Esse prodígio, espalhado por toda a cidade, teve grande número de testemunhas, que o souberam ou por intermédio de Lourenço ou por Francisca mesma, que o citou mais de uma vez, para excitar os outros a darem esmolas sem parcimônia.
Francisca teve vários filhos. Não se conhece senão o nome de três: Batista, que sobreviveu aos demais, casou-se e deixou descendentes; Evangelista, que morreu aos nove anos de idade; uma filha, chamada Inês. Evangelista foi um anjo terreno, tanto se comprazia na oração e no culto divino. Teve o dom da profecia. Um dia, tomando da espada do pai e colocando-lhe sobre o lado, disse: “Eis o que vos acontecerá”. E na invasão de Roma, por Ladislau, rei de Nápoles, por volta de 1413, Lourenço foi gravemente ferido no lugar marcado pelo filho. Era maravilhoso ver as obras que o pequeno Evangelista fazia, bem superiores às que sua idade permitia. O que mais parecia preocupá-lo e falava à mãe com a maior alegria era a preparação para a vida eterna. Sua felicidade não tardou. No ano 1411, a peste que desolava Roma, alcançou Evangelista, quando tinha nove anos. Fizeram logo vir um confessor, e, tendo recebido a absolvição, disse à mãe: “Lembra-se, mamãe, de que eu lhe disse que neste mundo nada me agrada e que desejo a vida eterna e a companhia dos anjos. Deus olhou com bons olhos os meus desejos. Eis que vamos nos separar. Meus patronos, Santo Antônio, Santo Onofre, vieram do céu e estão aqui com uma multidão de anjos. Tenha sempre coragem e saiba que estarei bem e que rezarei pela senhora. Agora, dê-me sua bênção”. E, arrumando ele mesmo as mãos e o corpo, entregou-se a Deus. No mesmo instante, uma pequena da casa vizinha, que estava à morte e desde muito tempo não falava, atacada de um mal, exclamou de repente: “Olhem, olhem Evangelista Ponzani que sobe aos céus, entre dois anjos!”.
Durante uma noite em que Francisca velava deitada, e a pequena Inês dormia no mesmo quarto, viu uma pomba branca, levando no bico um círio aceso, que ela aproximava de todos os sentidos da menina. Depois, voou de ambos os lados e, batendo as asas, desapareceu. Fazia aproximadamente um ano que Evangelista morrera. Francisca não sabia o que pensar da visão. Outra noite, já perto do amanhecer, viu o quarto banhado em uma claridade incomum e no meio dessa luz aparecer seu filho, tal qual era quando vivo, incomparavelmente mais belo, porém, ao lado, via ela um jovem, bem mais belo ainda. Atônita, a princípio, depois tomada de inenarrável alegria, ainda mais que o via aproximar-se e saudá-la graciosamente, não se conteve e estendeu-lhe os braços, perguntando com ternura o que fazia e onde estava e se se lembrava de sua mãe no céu. Ele lhe respondeu, erguendo os olhos para o céu: “Nossa ocupação é contemplar o abismo eterno da bondade divina, louvar e bendizer sua majestade com transportes de alegria e amor. Inteiramente absortos em Deus nessa celeste beatitude, não somente não sofremos dor, como não podemos tê-la e gozamos de uma paz que durará sempre. Não queremos, nem podemos querer senão o que sabemos ser agradável a Deus, que é nossa inteira e única beatitude. Saiba que os coros que estão acima de nós nos manifestam os segredos divinos”. E acrescentou: “Como quer saber, minha mãe em que lugar me encontro agora; saiba que estou colocado no segundo coro da primeira hierarquia, entre os arcanjos, e associado a este jovem que é bem mais belo do que eu, porque, no mesmo coro, se encontra em degrau mais elevado. Foi enviado por Deus para consolá-la na peregrinação. Será seu companheiro perpétuo, e, dia e noite, terá a consolação de vê-lo. Agora, anuncio-lhe que vim para levar Inês, que morrerá dentro de pouco tempo e gozará comigo das alegrias do paraíso”.
Então Francisca compreendeu o que significava a pomba. Após esse consolo, que durou cerca de uma hora, da aurora ao levantar do sol, Evangelista pediu permissão à mãe para se retirar, deixando o outro anjo. A beleza de ambos era tão desconcertante, que jamais ela teria podido fixar neles os olhos, se Deus não houvesse moderado o esplendor. Foi o que ela testemunhou mais de uma vez ao diretor espiritual, que a obrigou pela obediência a dar-lhe conhecimento de tudo quanto ela vira de extraordinário, e que escreveu sua vida, tão certo do que ouvira dela como do que sabia por si mesmo. Certa, pois, da morte próxima da filha, Francisca não contou nada a ninguém. Entrementes, ela a servia com amor e respeito, não mais como filha, mas como uma esposa destinada a Jesus Cristo, o rei terno, dando graças a Deus por dignar-se chamar a menina a si. Inês ficou doente e deixou este mundo, aos cinco anos de idade.
Quando da invasão de Roma por Ladislau de Nápoles, Paolúcio, cunhado de Francisca, foi lançado ao cárcere. Seu marido, Lourenço, condenado ao exílio. Não ficou em casa mais do que Batista. O comandante do rei, ao deixar Roma, quis levá-lo como refém. Francisca, que não tinha senão ele, pensou em escondê-lo. O confessor, movido por desígnios mais elevados, ordenou-lhe que ela mesma o conduzisse ao comandante. Ela obedeceu. O comandante e os oficiais ficaram admirados. Alguns, todavia, censuraram-na por expor assim seu filho único ao cativeiro, talvez mesmo à morte. Aconselharam-na a solicitar indulto do comandante. Ela respondeu: “Implorarei a graça de quem pode socorrer-me”. E se pôs de joelhos diante de uma imagem da Santa Virgem. O comandante fez com que Batista fosse colocado sobre um cavalo para partir. Apesar de todas as esporas, o cavalo recuava, ao invés de avançar. Houve mesmo alguns que fizeram o rapaz montar. Por fim, espantado, o comandante entregou-o à mãe, que recebeu, assim, o prêmio por sua obediência.
Frequentemente tinha êxtases, durante os quais ficava imóvel. Mas desde que seu diretor espiritual lhe ordenasse ou pedisse alguma coisa em nome da santa obediência, ela fazia e respondia de acordo com as ordens e perguntas, sem sair do êxtase, permanecendo insensível como uma pedra à voz de qualquer outra pessoa. Essa experiência se deu mais de uma vez diante de grande número de pessoas. Um dia, estava em seu quarto com Vannozia, recitando o ofício da Santa Virgem. Estava para recitar uma antífona, quando o marido a chamou por meio de um criado. Imediatamente deixou o livro e executou o que o marido lhe mandara. Voltou ao quarto e retomou a antífona interrompida, quando foi chamada pela segunda vez. Tornou a interromper a antífona para obedecer com prontidão. Isso aconteceu quatro vezes seguidas. Na quarta vez, quando retomou o livro nas mãos, encontrou a antífona escrita em letras de ouro e soube de São Paulo, no êxtase, que Deus fizera-o por um anjo, para testemunhar-lhe o quanto sua obediência lhe era agradável. Vannozia, que estava presente, foi testemunha ocular do milagre.
A peste grassava em Roma. A caridade de Francisca apressou-a a socorrer os empesteados. Antes de mais nada, aconselhava-os a santificar a doença, pela salvação da alma. Depois fazia tudo quanto lhe era possível para lhes restituir a saúde. Deus lhe concedeu a graça das curas. Doentes de toda parte acorriam a ela, e sua ternura não recusava nenhum. Para satisfazer à multidão que a procurava, arrumou para eles várias dependências na casa de seu marido, de onde saíam curados, contra toda expectativa. Como eles atribuíssem a ela os méritos da cura, imaginou um meio de desviar-lhes os elogios. Compôs um medicamento com cêra, óleo e suco de ruta e manjerona. Esperava que atribuíssem a cura à virtude do medicamento e não aos méritos da pessoa. Aconteceu o contrário, os doentes, que saravam em grande número e rapidamente, em vista disso, dedicaram-lhe mais veneração ainda. Não contente de servir aos doentes em sua própria casa, Francisca foi procurá-los nas cabanas e nos hospitais, deu-lhes de beber, preparou-lhes a cama, limpou-lhes as feridas. Quanto mais as chagas eram horríveis e lhe revoltavam o coração, mais cuidava delas, dobrando a atenção. Algumas vezes, para vencer melhor a repugnância da natureza, tomou desse líquido infecto e o espalhou pelo rosto, chegando até a bebê-lo. Mas Deus, para mostrar como essa vitória lhe era agradável, tornava essa infecção mais deliciosa do que as iguarias mais finas. Francisca tinha o costume de levar ao hospital o que tinha de mais fino à mesa e distribuía aos mais indigentes. Levava para casa os andrajos mais sujos, levava-os, remendava-os com cuidado. Depois, colocava-os entre perfumes, como se fossem servir a Nosso Senhor mesmo.
Assim, Francisca, de acordo com o que se constatou no processo de canonização, serviu aos doentes nos hospitais, durante trinta anos, enquanto o marido era vivo. Como fosse difícil encontrar médicos para tratar do corpo; por causa do contágio, e mais difícil ainda encontrar sacerdotes para o cuidado da alma, ela mesma se encarregou de ir buscar um, para trazê-lo para junto dos doentes que ela havia preparado. Assegurou ao eclesiástico um tratamento, a fim de que pudesse visitar os doentes que ela lhe indicasse no hospital. Não se pode imaginar quantas almas foram salvas por essa caridade.
Entretanto, desejava fazer uma peregrinação a Assis, principalmente porque ela tinha o nome do patriarca, São Francisco, e porque como ele, comprazia-se em meditar na Paixão do Salvador. Pôs-se a caminho a pé, pelos fins de julho, para assistir a 2 de agosto a festa da Porciúncula. Estava acompanha de Vannozia, sua cunhada, e de uma de suas amigas, chamada Rida, ou seja, abreviação de Margarida. Dividiam o tempo entre piedosas meditações e piedosos entretenimentos. Estavam chegando ao fim da peregrinação e entrando na planície de Foligno, quando se juntaram a venerável religioso, que vestia o hábito franciscano, o qual, após tê-las saudado, perguntou-lhes a causa da viagem e se pôs a falar com maravilhoso fervor da infinita caridade que o Salvador nos testemunhou. A santa, reconhecendo que aquele que falava com amor tão inflamado da Paixão de Jesus Cristo era o próprio São Francisco, sentiu-se emocionada até o fundo da alma e experimentou uma alegria indizível. Suas companheiras estavam igualmente encantadas com um entretenimento tão agradável e esqueceram a fadiga do caminho. Todavia, como estavam no fim de julho, o calor excessivo fazia-as sentir grande sede. O Santo, batendo com o bastão em uma pereira silvestre, à beira do caminho, fez caírem peras tão bonitas e grandes, que as piedosas peregrinas apenas conseguiam abarcar uma com ambas as mãos. Enquanto admiravam o portento, o santo desapareceu. Reconheceram elas que aquele que havia falado não era um mortal. E elevaram a Deus as mais fervorosas ações de graça.
Os primeiros confessores de Francisca morreram. Escolheu, então, o sacerdote João Matteoti, cônego-cura de Santa Maria Nova, que não ficava longe da casa. Foi ele seu diretor espiritual durante todo o tempo que ela viveu. Foi ele quem nos deixou a primeira biografia da santa, da qual os principais atos se encontram, aliás, juridicamente atestados nos processos verbais da canonização.
Essa biografia é em três livros. O primeiro expõe muito abreviadamente os principais fatos de sua vida. O segundo, apresenta o elenco das principais visões, em número de 97. O terceiro contém as lutas com os demônios, e as revelações sobre as penas do inferno, as expiações do purgatório, as alegrias do paraíso.
Além do anjo da guarda, tal como o temos todos, Francisca tinha ainda, como já sabemos, um arcanjo para assisti-la perpetuamente. Ela o via, dia e noite, sob a forma humana de uma criança de nove anos, vestido com uma túnica branca como neve. Seu rosto era mais resplandecente do que o sol, de sorte que ela podia ver-lhe o brilho, mas não olhá-lo. Apenas em duas ocasiões ela podia contempla-lo mais facilmente: quando falava do arcanjo ao diretor espiritual; então podia observar-lhe os cabelos, os olhos e os demais membros. E quando era atacada pelos espíritos malignos. Neste caso olhava sem dificuldade alguma para o arcanjo, para se reconfortar com essa visão. O que é mais admirável quando ela era batida e enfadada pelos espíritos malignos, a ponto de quase morrer, é que o arcanjo aparecia com o rosto resplandecente e a cabeleira irradiando luz. Os espíritos malignos não podiam suportar o brilho e fugiam inteiramente confundidos. Tal era o brilho do arcanjo, que, à claridade dele, Francisca fazia durante a noite todos os exercícios necessários na casa, sem nenhuma luz material.
Quanto às revelações de Santa Francisca sobre o inferno, o purgatório e sobre a hierarquia dos anjos, revelações que a Igreja examinou sem nelas encontrar nada que merecesse reparos, podem ser vistas resumidas no tomo XXI da Historia da Igreja.
Lourenço Ponzani, tocado pelas virtudes da santa esposa, e sabendo como aspirava ela a uma vida mais perfeita, resolveu guardar com ela a continência, contanto que ela continuasse morando com ele na mesma casa e a dirigir a família, prometendo-lhe não lhe contrariar jamais a vontade, nem causar-lhe aborrecimentos. Francisca sentiu-se inundada de alegria. Não devia senão servir a Deus e ao esposo. Deus, acima de todas as coisas. O esposo, como seu irmão, nas enfermidades que contrairia como consequência dos ferimentos, da prisão e do exílio. Quanto a ela mesma, vendo-se livre de todo o resto, vendeu suas roupas caras que vestia até então por obediência e empregou o preço em roupas para vestir os pobres. Vestiu-se com um vestido de burel, que os próprios criados não gostariam de vestir. O mundo não podia compreender que uma dama tão nobre e tão rica se humilhasse dessa maneira. Ela ia a um dos seus vinhedos, perto de São Paulo e colhia cachos de uva, trazendo-os, depois, à cabeça, através da cidade, para distribuí-los entre os infelizes. Seu marido viu-a um dia. Não lhe disse nada, sabedor que era dos santos motivos que a levavam a agir assim. Algumas vezes conduzia um burrico carregado de feixes de lenha que distribuía pelas casas dos mais indigentes. E fez mais: durante uma época de carestia, ia com sua cunhada Vannozia aos bairros de Roma onde não eram conhecidas e mendigavam de porta em porta, para dar aos pobres. Como percebessem que elas mesmas não eram pobres, aconteceu várias vezes que receberam injúrias em lugar de dinheiro. Durante um desses atos de humildade e caridade, ouviram gemidos dentro de uma casa: uma criança acabava de morrer sem ter recebido o batismo. Francisca tomou-a nos braços e a entregou viva à mãe, recomendando aos presentes que nada dissessem. E fugiu-lhes à vista. Amava de tal modo a pobreza, bem como a humilhação, que se colocava, de forma prazerosa, entre os mendigos à porta das igrejas. Os pedaços de pão que lhe davam como a uma mendiga, ela os guardava para si e aos pobres dava pão inteiro de sua casa. Os pedaços quebrados pareciam-lhe mais deliciosos, porque tinham sido dados por amor a Deus.
Desprezando a si mesmo, dava-se a austeridades várias. Jamais bebeu vinho, nem quando sã, nem quando doente. Contente com uma só refeição por dia, não comia nada à tarde, a não ser em caso de doença ou por ordem do confessor, uma maçã cozida. E isso, raramente. Durante dezesseis anos sua nora, chamada Mobília, observou-a e jamais a viu comer carne, ovos, laticínios, peixes, ou outras coisas que pudessem agradar ao paladar. Bem ou mal de saúde, seu alimento era pão ordinário, legumes ou ervas cozidas, com um pouco de sal, sem azeite. Não dormia senão duas horas, sobre uma cama dura, em uma posição incômoda, mais sentada do que deitada. Sobre o corpo tinha um cilício, com uma cinta de crina e um círculo de ferro, que lhe ocasionou mais de uma ferida. Ajuntai a isso um açoite de pontas de ferro, com as quais se supliciava até arrancar sangue. Perseverou nesse rigor de penitência até que o confessor lhe proibiu o uso do círculo de ferro e dos açoites. Todavia, embora tão severa consigo mesma, Francisca era doce e indulgente para com todos, não deixando faltar nada a ninguém, principalmente aos doentes e cumprindo com uma constância solícita todos os deveres de mãe de família.
Quando meditava na Paixão do Salvador, sentia-se profundamente tocada, a ponto de verter lágrimas abundantes. Sua nora e os criados temeram mais de uma vez que morresse de dor. Essa dor não lhe penetrava somente a alma, como também o corpo. Pensava nos pés e nas mãos perfurados por pregos, que sentia os próprios pés e as mãos doloridos, de tal forma que não podia fazer uso deles. A coroa de espinhos lhe ocasionava uma coroa de dores de cabeça. A flagelação deixava-lhe os membros amortecidos. Nessa contemplação dolorosa, era arrebatada em êxtase. Os pés e as mãos vertiam sangue. Meditando sobre o lado aberto do Salvador, todo o peito se cobria de feridas. Esse sofrimento lhe durou muito tempo. Saia-lhe um líquido semelhante à água. Foi necessário aplicar uma toalha e mudá-la de tempo em tempo. Não podendo fazê-lo sozinha, tanta dor sentia, viu-se obrigada a contar seu segredo a Vannozia e a duas outras companheiras íntimas, que guardaram essas toalhas como relíquias. Curou-se da ferida durante um êxtase, no dia de Natal no ano de 1432, em presença de uma de suas companheiras e do confessor.
Desde criança, Francisca ia habitualmente à missa e se confessava na igreja de Santa Maria Nova, perto da casa paterna. Essa igreja era cuidada pelos Beneditinos da congregação do Monte Olivete, fundada pelo bem-aventurado Bernardo Ptolomeu de Sena. Quando de seu casamento, Francisca foi morar em outro bairro. Mas, vinha constantemente confessar-se na igreja de Santa Maria. Ela havia conquistado a afeição e a confiança de numerosas damas que frequentavam a mesma igreja. Relações piedosas se estabeleceram entre elas. Um dia, no ano de 1425, falando-lhes com fervor extraordinário, Francisca lhes expôs como seria agradável a Deus se todas se consagrassem à Santa Virgem e, sob sua proteção maternal formassem uma associação de piedade, pela própria igreja, como outras, tais como a do rosário ou do escapulário. Essa ideia agradou sobremaneira a todas as senhoras, que a olharam como inspirada do céu e digna de ser posta em execução imediatamente. No dia da Assunção, fizeram a solene entrega de suas pessoas à Santa Virgem, por uma oblação. De onde lhes adveio o nome de Oblatas. Todas tinham em Francisca a mãe e a superiora que ela mesmo lhes havia dado. Foi a semente, que com o tempo, deveria produzir algo de mais perfeito. Quando Francisca recebeu do marido plena liberdade de seguir todos os movimentos de sua devoção, pensou que poderia um dia reunir-se com essas damas piedosas em uma mesma casa e dar assim nascimento a uma congregação religiosa. Esse pensamento se tornou uma resolução formal, quando se viu privada da companhia tão agradável de sua cunhada Vannozia, com a qual vivera trinta anos inteiros em tal união, que ambas pareciam não terem senão um só coração e uma só alma. Doente Vannozia, Francisca sabia que ela não tornaria a levantar-se do leito. Assistiu-a constantemente com sacerdotes e outras pessoas piedosas. Percebendo que o espírito maligno procurava perturbar a moribunda, recomendou ao padre reprimi-lo pela aspersão de água benta. Isso feito, o arcanjo que acompanhava Francisca continuamente, obrigou, com um olhar, o tentador a se retirar, transformado em mísera formiga. A doente morreu santamente e Francisca viu sua alma subir ao céu, em uma nuvem luminosa.
Tres santos levaram Francisca a procurar a fundação da congregação das Oblatas: São Paulo, São Bento e Santa Madalena. No começo do mês de julho de 1433, o papa Eugênio IV incumbiu disso a Gaspar, arcebispo de Cosenza, que pelo fim do mesmo mês, deu parecer favorável. As piedosas senhoras, algumas solteiras, outras viúvas, se reuniram em uma casa chamada a Torre dos Espelhos. Francisca, madre e fundadora, não pôde segui-las imediatamente. Seu marido, que ainda vivia e sofria de muitas enfermidades, reclamava continuamente sua assistência. Morreu cristãmente em 1436. A partir de então, reuniu-se às queridas filhas. Tendo colocado tudo em ordem, foi prostrar-se à porta do convento, descalça, braços cruzados, suplicando às irmãs, em meio a lágrimas e soluços, que a admitissem em sua companhia, a ela que era uma mendiga e pecadora que, após ter dado ao mundo a flor da juventude, vinha oferecer a Deus os restos de uma velhice esgotada. Esse espetáculo inesperado comoveu às lágrimas todas as irmãs, que a levantaram com carinho e a introduziram na casa com santa alegria. Ela tomou o hábito e fez sua oblação no dia de São Bento, em 21 de março de 1436. A superiora era, então, a irmã Inês de Lellis. Mas todas suplicaram a Francisca aceitar ser a superiora, já que era a madre e fundadora. Resistiu durante muito tempo, não para ser servida, mas para servir as outras, como a última de todas. Por fim, cedeu às instâncias. Mas como suas frequentes visões e êxtases podiam ser-lhe um obstáculo para o perfeito cumprimento de certos deveres, tomou por assistente a própria Inês de Lellis. A vida de Francisca era uma regra viva de perfeição. Todo dia à tarde, prostrava- se diante de todas as irmãs e, de mãos postas, pedia-lhes humildemente perdão pelas faltas que pudesse ter cometido. Deus não cessou de glorificar a humilde serva pelo dom da profecia, e grande número de milagres, juridicamente comprovados por testemunhas oculares. Enfim, em 2 de março de 1440, sabendo que seu filho João Batista se encontrava doente, foi visitá-lo com uma das irmãs. Encontrou-o melhor. Mas ela mesma ficou doente lá. Queria retornar ao convento à tarde, segundo a regra. Todavia, como ficava longe, o confessor ordenou-lhe que ficasse por obediência na casa do filho. Conheceu por revelação que morreria dentro de sete dias e preparou-se para a morte como havia vivido, isto é, santamente. Realmente, recebidos todos os sacramentos da Igreja, expirou tranquilamente no dia 9 do mesmo mês, aos cinquenta e seis anos de idade. Um minuto antes de morrer, vendo-a mover os lábios, o confessor lhe perguntou se queria alguma coisa. Ela, respondeu-lhe: “Estou terminando as vésperas da Santa Virgem!”.
Os milagres foram tão numerosos após sua morte como o haviam sido durante a vida. Desde então começou-se e honrá-la com culto público. Entretanto, o processo de canonização, começado sob Eugênio IV e Nicolau V, terminou apenas sob Paulo V, em 1606. Seu corpo pode ser visto em Roma, em um relicário magnífico e lá se celebra sua festa, no dia 9 de março, com muita solenidade. As religiosas que reconhecem Santa Francisca por fundadora não fazem nenhum voto. Prometem simplesmente obedecer à madre presidente. Elas têm pensão, herdam dos pais e podem sair com a permissão da superiora. Nos conventos que elas têm em Roma, existem damas das mais distintas.
Santa Francisca Romana, rogai por nós!
(Fonte: in Vida dos Santos, Editora das Américas, Vol. IV, Padre Rohrbacher, 1959, pp. 272-292 – Texto revisto e atualizado e destaques acrescidos)