Espiritualidade e Sabedoria Beneditina
UMA REGRA, UMA SÓ VONTADE
(Uma oportuna introdução da Regra milenar de São Bento)
UMA REGRA, UMA SÓ VONTADE
A Regra de São Bento1 mereceu até aos nossos dias, uma especial atenção por parte da investigação, não só religiosa mas também acadêmica, a nível codicográfico, bibliográfico e exegético. É um texto por excelência, pois marca toda a tradição do monaquismo ocidental, sendo transmissor de valores antigos como a oração, o silêncio, o trabalho e a humildade, todos eles ecos indissociáveis da Sagrada Escritura.
Naturalmente o leitor quando entra em contato com o texto antigo, depara-se não só com uma linguagem caraterística e de uma época histórica, mas também institucionalizada nos costumes antigos. A hermenêutica do texto anda de mãos dadas com a tradição monástica e com a crítica textual dos nossos dias2, comparando outros textos similares. É de realçar uma fonte próxima de estudo, a Regra do Mestre3, e outras4 Regras de vida contemporâneas à Regra de São Bento. Queremos, com este pequeno estudo, facultar alguns princípios de orientação para ajudar na interpretação da Regra, e mais concretamente facultar algumas pistas de aplicabilidade da mesma.
1 – O que é a Regra de São Bento?
A fantástica figura de São Bento5, a que hoje toda a Europa tem dificuldade em chamar Pai e Santo, deixou, num passado distante, uma tradição vivencial dos valores cristãos que se tem demonstrado sempre atual. Se dizemos que os monges civilizaram a Europa, a afirmação encontra veracidade na própria história do nosso continente. O papel do monaquismo no desenvolvimento de infraestruturas, pessoas e locais orientou-se, grosso modo, como escola para o que hoje dizemos Europa. O movimento beneditino tornou-se veículo de cultura, de valores sociológicos e políticos do cristianismo, e, ao homem do Séc. XXI aparta-o das variadas éticas oferecidas pela sociedade hodierna como rumo possível de felicidade, sendo a maioria delas facções do efémero que resultam, por fim, em arredar o sentido de Deus da vida do homem. Mas, para que tal fosse possível, foi essencial o contributo de um texto base a que os monges chamaram, desde sempre, Regula Monachorum6.
Ora a Regra não é mais que um simples texto de orientação para a vida do dia a dia nos Mosteiros. Acreditamos, mesmo depois de tantos estudos críticos sobre a RB (=Regra de São Bento), que ela foi escrita, não parcialmente, pelo Santo Patriarca. Não temos o texto primitivo mas sim códices copiados que chegaram até nós. O mais conhecido pela sua antiguidade é o Ms. Sangallensis 914, de inícios do Séc. IX7. O Imperador Carlos Magno, em 788, seria possuidor de uma cópia da RB, segundo alguns historiadores, e que mais tarde teria sido copiada e conservada na antiga biblioteca da Abadia de Sankt Gallen, Suíça. Tal códice coloca-nos diante da própria linguagem de São Bento. Estudos posteriores possibilitaram, graças a Dom Philibert Schmitz, monge de Maredesous, Bélgica, uma edição manual e escolar da RB, da qual hoje temos traduções para várias línguas8.
Assim, a RB articula-se por 73 capítulos e inicia-se num convidativo Prólogo, sendo o último capítulo um Epílogo, como chave de ouro, da obra. Num primeiro contato, podemos dizer que a RB participa totalmente do contexto de uma “lex”, mas tal precisão seria gradualmente incerta, pois, naturalmente, mais do que um documento legislativo é, por assim dizer, um testamento espiritual que São Bento lega aos monges. Sendo a Regra fruto de uma experiência pessoal antes de tudo, o Santo Patriarca quer que se pratique nos mosteiros uma verdadeira schola divini servitii9 (escola do serviço do Senhor), ou seja, uma escola onde cada um, com as suas qualidades, serve a Deus, mediante os vários princípios da vida monástica: a oração, a leitura da sagrada escritura, o trabalho10.
Ao analisarmos o texto da RB, apercebemo-nos de um esquema pouco rigoroso, mas que define os pontos chave para a vida monástica: no Capítulo I é-nos explicado em que consiste o cenobitismo em contraposição aos estados imperfeitos de vida monástica de então conhecidos; o governo do mosteiro é orientado por um Abade como demonstra o Capítulo II; sobre o conselho da comunidade, descreve o Capítulo III que os irmãos a ele devem ser chamados para se tomarem decisões; instrumentos das boas obras no Capítulo IV; como deve ser entendida a obediência, no Capítulo V; sobre a virtude do silêncio, o Capítulo VI; a humildade com os seus doze degraus no Capítulo VII. Portanto, os sete primeiros capítulos possuem os princípios da vida e espiritualidade monásticas.
As orientações litúrgicas também não são deixadas ao acaso e estão entre os Capítulos VIII e XX; as correções e formas penitenciais desde o Capítulo XXIII até ao XXX, ressaltando os temas do trabalho manual e da comunhão fraterna entre todos. O ordenamento da comunidade, cargos e ofícios dos irmãos, e o bom zelo que devem ter os monges, estão agrupados desde o capítulo XXXI até ao LXVII.
2 – Princípios sobre a RB
Muitas comunidades que seguem a RB vivem a experiência da dificuldade em entender ou procurar uma conciliação entre o ideal e a prática, isto é, um equilíbrio na fidelidade à RB. Acontece, muitas vezes, uma projeção de oportunidades de negativa avaliação comunitária ou pessoal. É muito fácil falarmos do regresso às fontes e logo depois corrermos, ao encontro de algumas ideias pitorescas dos sinais dos tempos. A dualidade de renovação e harmonia nem sempre é conseguida, numa prática que muitas vezes nos parece equidistante dos nossos desejos. De qualquer maneira, a RB tem sido desde sempre um texto suporte para os nossos mosteiros e leigos beneditinos.
No entanto, mantém-se uma questão de fundo: como podemos ser fiéis a uma Regra do Séc. VI com a realidade do nosso mundo?
Para nos ajudar, podemos identificar alguns princípios que nos fornecem dados para um entendimento e estudo da RB, sem deixar de lado a realidade da nossa cultura, situações e particularidades do nosso hoje, e, sem esquecer alguns princípios do passado, como já aludimos anteriormente.
Primeiro princípio: a RB não age diretamente sobre a comunidade, mas no coração e na mente de cada irmão
No início do prólogo da RB somos confrontados com a linguagem dócil de um pai que convida à escuta. A maneira poética em que discorre o texto, serve para o autor captar a nossa atenção e nos preparar para a grande novidade: a concretização da vida na união com Deus. O primeiro convite é escutar, para que, pela escuta atenta, possamos sair da nossa letargia, comodidade se quisermos, e tornarmo-nos atentos ao que podemos realizar diante da proposta divina.
Para São Bento o caminho é claro: partindo da escuta11 quem deseja seguir Cristo, pode por via da obediência chegar aos cumes da santidade. A voz de Deus é clara e ressoa ao homem de hoje como um apelo verdadeiro, que implica para cada um uma vida de intimidade com Deus sediada tanto no coração como na mente.
Assim, in primis12, conforme se inicia o segundo parágrafo do Prólogo, pede São Bento que tudo o que se quer realizar deve partir primeiramente da oração, ou seja, cada monge deve pedir a Deus o auxílio para a sua missão. Esta advertência inicial serve para realizar no coração de quem escuta, não a dependência de Deus, mas antes a aceitação do Seu amor paternal, isto é, não ser o próprio homem arquiteto da sua perfeição13, mas antes Deus Pai.
São muitas as referências à Sagrada Escritura na RB que nos transporta para a relação da Palavra de Deus com o homem. Os textos bíblicos citados, ao longo de todo o prólogo, como por exemplo Ezequiel e Romanos14, e outros tantos ao longo dos capítulos sucessivos da RB, demonstram a preocupação de S. Bento em apoiar15 e inserir nas suas próprias palavras o cunho do texto sagrado, dando-lhes uma autoridade viva, relacionando tacitamente as ideias, em perfeita articulação com a riqueza da autoridade sagrada.
Não se trata de uma exposição alegórica, isto é, o Santo Patriarca não se permite para além do texto, outros exemplos, isto é segue a fielmente a mensagem escriturística: «Levantemo-nos então por uma vez, pois nos desperta a Escritura, dizendo: Já são horas de nos levantarmos do sono. Abramos os olhos para a luz deífica e de ouvidos atentos, escutemos a exortação que todos os dias em altos brados, nos dirige a voz divina por estas palavras: Se hoje ouvirdes a sua voz, não queirais endurecer os vossos corações (…)»16.
Com efeito, a citação bíblica encara a situação com naturalidade e fluidez, acabando por transmitir àquele que escuta, que o hoje, (hodie), e são horas (hora est), dominam a advertência para nos lembrar que vivemos num mundo sobrenatural, sem contagem do tempo, que a qualquer momento podemos principiar na nossa vida algo de maravilhoso. Assim, confirmados17 na vida monástica, encontraremos na RB verdadeiros desafios que nos ajudarão com plena consciência a não perder o sentido da nossa vocação.
Segundo princípio: só podemos compreender a RB de forma completa e melhor se atendermos às suas características culturais, linguísticas e históricas
Para compreendermos o espírito da RB devemos atender a que certos aspectos só tiveram expressão no contexto histórico de S. Bento, evitando-se assim uma certa arbitrariedade. Convém-nos apenas simplificá-los e aceitar na vigilância de certos valores que, se compreendidos não na letra da Regra, mas no seu significado, nos ajudam a vigiar mais de perto as nossas ações. De fato, os capítulos18 que mencionam castigos corporais, proibições, admoestações, remetem para situações próprias de uma vida monástica então coexistente com toda uma panóplia de costumes paganizada, muito remota, em que para atingir o seu fim e equilíbrio de disciplina, sugerem um entendimento cultural e religioso encetado num período que não é o nosso. Seria puro revivalismo querer observar procedimentos de outras épocas: para vinho novo, odres novos (Mc 2, 18-22).
Não é necessário fazer um estudo escolástico da RB para a interpretar, mas sim atenção da nossa parte na compreensão enquanto leitores e seguidores de S. Bento19, de modo a captarmos o sentido e a devida aplicação prática à nossa contemporaneidade. A leitura paralela de um comentário à RB por algum autor acreditado, poderá facilitar e ajudar a um maior aprofundamento.
A principal preocupação da RB é ampliar a nossa mente, para que dentro do contexto de uma consciência mais alargada, as diversas situações serão resolvidas de forma mais genuína, isto é, cristãmente. É claro que este segundo ponto, normalmente, torna-se o mais esquecido uma vez que muitos leitores, no contacto com a RB, olvidam inteiramente o seu contexto primitivo e acabam por fazer uma leitura trivial, passando despercebidos os pontos-chave e as perspectivas que realmente nos interessam.
Terceiro princípio: a RB faz parte de uma tradição já vivida. Entender a Regra envolve o reconhecimento fundamental dos valores tradicionais antigos e os de agora.
Seria demasiado forçoso interpretar e entender a Regra de São Bento como definitiva e máxima expressão da vida monástica20.
Sabemos, de antemão, que algumas orientações e procedimentos relembrados na Regra são específicos e localizados para as primeiras comunidades de São Bento, ou seja, para o seu tempo. Muitos elementos, que hoje temos como permanentes21, reafirmam este lado peculiar da própria Regra, que se mantém atualizada nas realidades da nossa vida. É, portanto, a tradição vivida e assumida pelos próprios monges, pelas comunidades e por todos aqueles que têm na Regra não um objeto de ética de bons costumes, mas uma tradição experimentada, vivida nas suas várias metamorfoses ao longo dos séculos, até mesmo pelas reformas da própria Ordem Beneditina22, interiorizadas com o cuidado do Evangelho.
O texto de base à RB é, sem a menor dúvida, a própria Escritura: revelação, tradição dessa revelação de Cristo pelos apóstolos, vivência dessa tradição por quem nada quer antepor ao amor de Cristo.
Se no prólogo à Regra encontramos algumas citações bíblicas, elas continuam nos capítulos sucessivos. Por exemplo, quando, no Capítulo VII, é explicado ao leitor como deve procurar embelezar a sua vida espiritual e humana, com este valor de ouro, que é a humildade, para se fazer entender, São Bento utiliza trinta e oito citações da Sagrada Escritura. No Capítulo LVIII, da recepção dos novos irmãos à vida monástica, encontramos uma referência explícita à passagem da Carta de João, ipsis verbis, pedindo que sejam experimentadas as razões da vocação, para com mais rigor discernirem as vontades dos espíritos. Também nesta linha, o Capítulo LXXII, Do bom zelo que devem ter os monges, serve como chave de leitura para toda a Regra. Se um Prólogo é o escrito anteposto à obra, este penúltimo capítulo da RB é o final que se anuncia, transmitindo que a própria Regra foi escrita para chegarmos ao que é bom, ao que arde ao nosso amor, com oito recomendações finais que são herança para um futuro, onde cada um de nós será conduzido à vida eterna.
Nesta tradição de comportamentos, cada um, sempre atento à vontade de Deus e nos níveis propostos de valores, pode então guiar a sua vida num estilo diferente, porque o que se mantém permanentemente, está concentrado mais em elementos interiores do que em observâncias externas.
Portanto, os limites de uma subcultura do tempo de São Bento, que se nos podem colocar como obstáculos à nossa cultura de hoje, saem completamente descentrados da nossa consciência, favorecendo a ideia do necessário vivencial, sendo a Regra, mais que um conjunto de valores tradicionais, um pêndulo que ritma a nossa vida, guiada sempre pelas palavras e exemplos de Jesus.
Quarto princípio: nem todos os aspectos imaginados pela RB valem a pena: identificar seriamente costumes e significados contidos em alguns capítulos que podem tornar-se inaplicáveis.
Mesmo com uma profunda reverência à autoridade da RB, ninguém pode alterar o seu cunho medievalista, cuja aceitação e seria ultrapassar os limites reais da nossa hodierna forma de viver. No confronto com a Sagrada Escritura temos o equilíbrio, a medida, e a intentio cordis23 purificada, porque a RB deve ser interpretada e questionada à luz do Evangelho, e não, o Evangelho à luz dos textos monásticos24.
Um mau exemplo prático é o de tomar à letra algumas ideias de São Bento. À partida, não seriam contra os valores sócio-culturais do séc. VI, mas vamos aos exemplos. O Capítulo V, Da obediência, lido de uma forma corrida, deixa-nos a impressão de que São Bento, coloca de parte todo o diálogo, porque a obediência fica notada pela intrínseca forma de cega observância, e vontade submissa, a quem está acima de nós. Não há outras forma de itinerário, uma vez que a desobediência leva ao inferno25, e a obediência pronta é sucesso garantido do bem-fazer o que foi mandado. Julgamos então, e bem, que hoje a obediência cega não faz parte do nosso modus operandi. Claramente, que a RB ultrapassa os muros dos mosteiros e as portas de uma biblioteca. Partindo do princípio de que as questões práticas da obediência passam pelo diálogo, não podemos levar a sério a pobre ilusão de uma “comunidade submissa”, porque no interior de São Bento está o desejo indireto de que os seus filhos, discípulos e amigos, possam interpretar e escolher entre a “tradição” e “as tradições”. O monacato, e toda a espiritualidade beneditina, obedece ao Evangelho e ao seu carácter sapiencial, que implica sempre uma hermenêutica, o tão falado equilíbrio, como máximo lema característico de São Bento, a justiça e adaptação, neste conhecimento de Deus e das realidade humanas e não como simples aplicação de receitas espirituais26, que aparentemente parecem caminhos certos de santidade, mas que na realidade são apenas puros princípios de procedência gnóstica, isto é, de puro conhecimento prático.
Podemos ter pessoas muito obedientes e foi até já dito que existem religiosos que, debaixo do hábito, são puramente ateus em relação à fé, ou seja, ao espírito, mas portadores de um grande conhecimento27 prático das coisas.
Para São Bento, o agradável a Deus é que o discípulo escute o mestre, e possa descobrir nesse agir todo um caminho de aprendizagem e de adaptação, para que as suas qualidades humanas estejam ao serviço de Deus. O Santo Patriarca tem bem claro algo que também nós e devemos ter como dado fundamental na nossa vida cristã: Cristo veio para revelar a bênção e salvação de um Deus justo, sobre a vida de cada homem na terra, com toda a realidade existencial e redentora, mesmo quando falhamos e sofremos a consequência da nossa desobediência.
Portanto, não se trata de uma tentativa para amestrar o comportamento desobediente, que sabemos existir na nossa natureza humana, mas antes de formar e redescobrir o caminho de liberdade pelo equilíbrio da obediência e confiança em Deus.
Ter o coração aberto significa, antes de tudo, um desprendimento interior muito grande, deixar-se inundar pelo gosto de escutar. Certamente que é necessário determo-nos em duas perguntas: como escutamos? Porque escutamos o outro? O Evangelho explica-nos, face a esta realidade que todos os dias se faz presente, como parte integrante do nosso diálogo, a escuta como processo de atenção. A escuta reflete antes de mais um dos nossos primitivos elementos sensoriais, que possibilita a nossa forma de agir na vida, dando-nos alegria e aceitação da realidade. Todos nós experimentamos isto de forma concreta: se alguém nos vem dizer algo, e pela forma como foi dito, poucas vezes aceitamos, mas se outra pessoa nos repete o mesmo, de forma diferente, facilmente aceitamos, não pela aceitação da repetição, mas porque a maneira de dizer foi atenciosa, isto é, aumentou em nós a capacidade de escutar e de responder.
O nosso corpo também vivencia todas estas coisas, os cinco sentidos estão interligados de forma fabulosa. Basta relembrarmos o suar das mãos, ou a dor no estômago quando escutamos algo negativo, discussão ou reprimenda, e alegria e bem estar de quando dizemos palavras de amor, amizade e compreensão. Quando as nossas sensações estão sintonizadas28, temos a oportunidade de perceber o que acontece dentro e fora de nós mesmos. Escutar com o ouvido do coração como diz São Bento, significa estar presente, aberto e atento, na vida diária. Ter o nosso olhar sempre centrado no essencial é preferir na nossa vida Cristo, ao invés de manter a nossa atenção nos costumes e significados inaplicáveis à nossa realidade, à nossa vivencia. O nosso tempo é o melhor de todos porque é em cada um de nós que Deus se revela e fala ao nosso interior, para fundamentalmente darmos testemunho de tudo o que vimos (Ap 1, 1-2).
Quinto princípio: a RB foi escrita para quem é aprendiz. A capacidade da RB para formar consciências é garantido pela sua alternativa, de contínua disciplina de ensino, sobre uma mera aprendizagem pré-concebida humanamente.
Este último princípio coloca diante de nós uma realidade absoluta, na qual uma regra de vida é inteiramente necessária e tida como coisa primeira, crença ou conjunto de valores. Podemos encontrar esta ideia nas próprias palavras de São Bento quando diz: «Quem quer que sejas, portanto, que te dás pressa em chegar à pátria celeste, põe em prática com a ajuda de Cristo, este pequeno esboço de Regra escrita para principiantes. E então chegarás finalmente, com a proteção de Deus, a essas sublimes alturas de doutrina e de virtudes, que a acima nos referimos. Amém»29.
As virtudes são então um conjunto de ações que devemos ter bem presentes, que gradualmente postas em prática, ajudam a crescer espiritualmente. Aprender a rezar com mais profundidade, trabalhar com afinco, saber escutar e saborear o silencio, eis algumas dádivas que a RB nos oferece continuamente.
São Bento insiste que o amor a Cristo30 deve deter a primazia, isto porque se alguém procura de facto descobrir Deus na sua vida, só o pode fazer escutando Cristo. Quem prefere a Cristo acima de todas as coisas, naturalmente se torna homem ou mulher de vida virtuosa, que a cada dia sabe responder aos desafios de forma concreta, humana e cristã, e não foge da realidade, porque, por intermédio da sua forma de ser e estar, torna-se caminho e exercício para a plenitude de amor31, de fato este agir através da fé, enriquece e valoriza as nossas relações humanas, porque dá fiabilidade e abundância para a vida em família, para a vida em comum.
Ao lermos um texto como a RB, pensamos como é bom sentirmos a vida monástica como elo inspirador, na sua regra de vida, nos pontos de orientação, nos elementos mais práticos. Mas tudo isto, serve de desafio para reexaminarmos aspectos e práticas da nossa forma de pensar, o que pode confirmar o que fazemos e deixamos de fazer. Pode-nos ocorrer um novo despertar para alguma coisa que esquecemos de fazer, ou com o que contactamos no imediato.
Assim, sem hesitação, um diálogo formulado a partir dos nossos objetivos com o que até agora conquistamos, fará, sem absorver a nossa crítica, desejar cada vez mais um equilíbrio32 da nossa espiritualidade, do nosso ser cristão.
A conversão, tema tão querido a São Bento, é esta certeza dinâmica, de que na nossa vida a escolha não deve ser um drama, mas um desprender-se de ideias e coisas. Jesus quer-nos como seus discípulos, e em verdade isto assume-se como um abandonar tudo para ser cada vez mais perfeitamente discípulo. É difícil tudo isto, mas se realmente queremos viver agarrados a Deus, necessitamos deste exercício de desprendimento, para, como principiantes, recolhermos os seus frutos, entregues totalmente a Deus, deixando a nossa alma livre de inquietações, porque «Deus nunca nos faltará em nada e nossa alma gozará da profunda paz, porque tudo esperará d’Aquele que é a beatitude de todos os santos»33.
Por outras palavras, a conversão expressa uma atitude e disponibilidade que nós cristãos esquecemos muitas vezes. Temos em nós muitos obstáculos, mas a luta interior que travamos deve ser sempre vencedora, porque a disponibilidade ajuda-nos a ajustarmo-nos às situações, a equilibradamente aceitar o passado e o presente, vivificar a tradição, (neste caso, o que nos pede a RB), no nosso contexto sócio-religioso, e para nos aproximarmos do que é essencial, como relembra o Santo Patriarca Bento34: «Nada absolutamente anteponham ao amor de Cristo, o qual todos juntos nos conduza à vida eterna».
Conclusão
A Regra de São Bento prova-nos, pela sua secular importância, que um cristianismo autêntico só pode existir quando é vivido pelo Evangelho de Jesus Cristo. Assim, no nosso objetivo ao escrever este pequeno conjunto de princípios, duma aproximação mais atual da RB, tivemos como ponto de partida a própria ideia contida no título do trabalho, «Uma só Regra, uma só vontade», isto porque depreendemos, neste conjunto de textos, um caminho espiritual que obedece apenas a uma voz, a uma só vontade, a de Cristo. Tal como nos lembra São Paulo: «corro, para ver se o alcanço, já que fui alcançado por Cristo Jesus» (Fl 3, 12-13).
Portanto, a Regra é um convite para correr e confiar. Correr, porque temos pressa de encontrar este Deus nossa meta de todo o percurso espiritual desta realidade a que chamamos vida. Confiar, porque Cristo, no seu convite para segui-lO, também nos diz para confiarmos tudo à Sua pessoa, a nossa realidade existencial com tudo o que temos de bom, mas também com tudo aquilo que nos faz maus, impelindo-nos a este correr que São Bento relembra no prólogo da RB. À partida, quem confia, deixa-se levar. O processo de conversão, de chegarmos apenas a «uma só vontade», demorará o tempo que for preciso para conhecermos, sem reservas, o nosso eu.
O deserto pode ser uma má miragem e secura pela purificação, mas a nossa vida cristã mais autêntica, à maneira de Cristo para que tenham vida, tornar-se-á um caminho percorrido de amor, de transparência e criação, que ao fim será santidade evangélica. Podemos afirmar muitas coisas sobre a RB, mas nunca esqueçamos que ela, e o seu autor, apenas desejam ser migalhas do Evangelho, fazendo do nosso coração morada de Deus.
_________Pe. André Olim, osb
________________
1 Para este trabalho utilizamos a seguinte edição: BENEDICTI, SANCTI – Regula Monachorum (=RB), LXXIII. Editio Altera Emendata. Belgique, Editions Maredsous, 1955. Em Língua Portuguesa existem as seguintes traduções: BENTO, SÃO – Regra de São Bento. Mosteiro de Singeverga, Edições Ora & Labora, 1992.; BENTO, SÃO – A Regra de São Bento. Rio de Janeiro, Lumen Christi, 1990.
2 Das muitas investigações realçamos o trabalho de: NEUFVILLE, JEAN; VOGÜÉ, ADALBERT – La Règle de Saint Benoît. Sources Chrétiennes. Paris, Les Editions du cerf, 1977. Nsº. 181-186.
3 Cf. VOGÜÉ, ADALBERT – La Règle du Maître. Sources Chrétiennes. Paris, Les Editions du cerf, 1964. Nsº. 105-107.
4 Cf. LAPIERRE, JEAN-PIE – Règles des Moines. France, Éditions du Seuil, 1982.
5 A vida de São Bento (405-547) crê-se ter sido escrita por São Gregório Magno e mais tarde divulgada através da obra «De Vitae et Miraculis Patrum Italicorum et de aeternitate animarum» conhecido comummente por Livro dos Diálogos, dividido em quatro volumes. O segundo Livro narra a vida e milagres do Patriarca dos Monges, São Bento de Nursia (Cf. GREGORII MAGNI, S. P. Benedictus Monacharum Omnium Occidentalium. Prolegomena, ed. J. P. Migne (PL 66), Paris 1859. Col. 125-204). Tradução portuguesa: SOUSA, GABRIEL – São Bento, Patriarca dos Monges e Pai da Europa. Singeverga, Edições Ora & Labora, 1983. Alguns estudiosos, como Kassius Hallinger e Francis Clark, discutem a autenticidade gregoriana dos Diálogos (Cf. CLARK, FRANCIS – The peseudo-Gregorian Dialogues. In: Studies in the History of Christian Thougt, nº 37-38. Leiden, Brill Academic Pub, 1987).
6Os títulos dados à Regra: Regula Monachorum, Regula Monasteriorum, ou simplesmente Regra de São Bento.
7Cf. DIAS, GERALDO COELHO – Problemática Moderna da Regra de São Bento e suas Edições em Português. Porto, Departamento de Ciências e Técnicas do Património – FLUP, 2002. p. 4.
8Em Portugal, só depois da Reconquista Cristã aos invasores islâmicos, se implementou o monaquismo beneditino, e com ele a Regra espalhar-se-ia por todo o reino. A Congregação Beneditina Portuguesa (1567-1834) possibilitou várias edições conhecidas, ao todo 44. Cf. DIAS, GERALDO COELHO – Problemática Moderna da Regra de São Bento e suas Edições em Português. Porto, Departamento de Ciências e Técnicas do Património – FLUP, 2002.
9Cf. RB, PROLOGUS. p. 45.
10Cf. ANTÓN, MIGUEL MARTÍNEZ – Conocer el Monacato de Nuestro Tiempo. Zamora, Ediciones Monte Cassino, 2001. p. 112.
11Cf. JEDRZEJCZAK, GUILLAUME – Sur un Chemin de Liberte. Québec, Anne Sigier, 2006. p. 22.
12 RB, PROLOGUS. p. 41.
13MARMION, COLUMBA – Le Christ Idéal du Moine. Belgique, Abbaye de Maredsous, 1936. p. 26.
14 No Prólogo, da Regra de São Bento, encontramos, por ordem, as seguintes referências bíblicas: Romanos 13, 11; Salmo 94, 8; Apocalipse 2, 7; Salmo 33, 12; João 12, 35; Salmo 33, 13; Salmo 33, 14-15; Isaías 58, 9; Salmo 14, 1; Salmo 14, 2-3; Salmo 113, 1; I Coríntios 15, 10; II Coríntios 10, 17; Mateus 7, 24; Romanos 2, 4; Ezequiel 18, 23. In: RB, PROLOGUS. pp.41-46.
15 HERWEGEN, ILDEFONSO – Sentido e Espírito da Regra de São Bento. Rio de Janeiro, Edições Lumen Christi, 1953. p. 28.
16 RB, PROLOGUS p. 42.
17 Cf. CASEY, MICHAEL; TOMLINS, DAVID – Introducing Benedict´s Rule. Germany, Editions of St. Otilian, 2006. p. 17.
18 O Cap. XXX é, sobretudo tenebroso aos nossos dias, o que se enquadra no plano mais legislativo da administração disciplinar da RB. Afigura-se imbuído do espírito bíblico: «Corrige o teu filho e ele te dará descanso, e farás as delícias da tua vida» (Pr 29, 17). Em concreto o próprio Cap. XXX está correlacionado com outro, de tema semelhante, o Cap. LIX.
19 Para se ser seguidor de São Bento basta querer ser de Cristo. Cf. DIAS, GERALDO COELHO – Religião e Simbólica, O sonho da escada de Jacob. Porto, Granito Editores e Livreiros, 2001. p. 185-203.
20 Cf. CASEY, MICHAEL; TOMLINS, DAVID – Introducing Benedict´s Rule. Germany, Editions of St. Otilian, 2006. p. 18.
21 O que queremos dizer com elementos permanentes, é precisamente referir os conselhos espirituais, que têm o seu próprio estilo na espiritualidade monástica, mas subjacentes a todos os critérios evangélicos. Como exemplo, podemos observar nos Capítulos I-VII uma forte realidade cristã, de onde se depreende sempre uma actualização e cuidado na nossa vida.
22 Dessas reformas basta relembrar a que foi mais proeminente, fundada por Ss. Roberto, Alberico e Estevão, e que transformou o monaquismo medievo, a Ordem Cisterciense. Outras se lhe seguiram como novas comunidades reformadas: Valombrosa, Monte Olivetti, Camalduli, etc.
23 Intenção do coração – Cf. RB, Cap. XX.
24Cf. TRAGÁN, P.-R. – Vida monastica: Una conversion continua. Separata “Nova et Vetera”. Zamora, 2001. p. 352.
25 «E, ou por amor do serviço santo a que se consagraram ou pelo temor do inferno e pela glória da vida eterna (…)»; «o que se manda for executado sem hesitação, sem demora, sem tibieza, sem murmuração, sem palavras de recusa, porque a obediência prestada aos superiores é a Deus que se presta (…)» – Cf. RB Cap. V.
26 Cf. TRAGÁN, P.-R. – Vida monastica: Una conversion continua. p. 352.
27 É certo que existe um gnosticismo cristão, e outro pagão, em diversas épocas, vertentes e categorias.
28 Cf. REUTER, MARY – A Corazon abierto, encontrar a Dios en la vida diaria. Santader, Sal Terrae, 2011. p. 99.
29 RB, Cap. LXXIII.
30 Cf. KURICHIANIL, JOHN – A Biblical approach to the Rule of St. Benedict. Bangalore, ISBF Publications, 2010. p. 56.
31 FRANCISCO, PAPA – Lumen Fidei. Lisboa, Paulus Editora, 2013. p. 68.
32 PENCO, GREGORIO – Spiritualità Monastica, aspetti e momenti. Abbazia di Praglia, Edizioni Scritti Monastici. p. 258.
33 MARMION, COLUMBA – Jesus Cristo Ideal do monge. Porto, Edições Ora et Labora, 1962. p. 283.
34 RB Cap. LXXII.
(Fonte: Mosteiro de Singeverga, Portugal – Texto revisto e adaptado para o português do Brasil. Alguns destaques são nossos)