A DOLOROSA PAIXÃO DE MARIA
(Pe. Júlio Maria Lombaerd)
Antes de considerarmos pormenorizadamente as imensas dores da Virgem vítima, lancemos um olhar sobre o conjunto do seu martírio, para compreendermos o seu lado íntimo, que é, sem contradição, o mais penoso e o mais comovente.
O Filho de Deus se fizera homem. A Virgem possuía o Desejado das colinas eternas. Ele se tornara seu Bem-Amado, o nosso Emanuel.
Haviam decorrido quarenta dias. dias de êxtase, quando ela é obrigada a se apresentar no templo de Jerusalém, para as cerimônias do resgate de Jesus, como o primogênito, para a sua própria purificação. Era a lei.
O velho Simeão acabava de entrar no templo, ao mesmo tempo que a sagrada Família. Toma o menino em seus braços, e, sob a inspiração do Espírito Santo que o animava, estava prestes a entoar um cântico de alegria.
De repente, o seu rosto se perturba, os seus olhos, cheios de lágrimas, fixam-se em Maria, e ele percebe, em uma visão profética, tudo o que esta Mãe terá que sofrer. Ele exclama, designando Jesus: “Ele será o alvo de contradição”. E, em seguida, dirigindo-se a sua Mãe: “Uma espada de dor trespassará a vossa alma”.
Maria escutara em silêncio esta terrível predição. Parece que Simeão não profetizou senão para ela somente, ele, que é o profeta do gládio!
O lúgubre porvir apareceu-lhe então: o seu Jesus será imolado um dia, e ela já se imola com ele.
Nobre filha de Israel, como o sofrimento já se torna, desde esse momento, a vossa partilha!
Desde esse dia ficais ciente da sorte que aguarda o vosso Filho e vosso Deus. E quem poderá descrever as vossas apreensões? Elas eram ao mesmo tempo terríveis e delicadas. Terríveis pela sua intensidade, e delicadas na sua formação, pois tinham, ao mesmo tempo, algo de Virgem e algo de Mãe.
Receios virginais que uma sombra é suficiente para aumentar, terrores de mãe que lhe fazem apertar o seu tesouro contra o seio, como para ocultá-lo ai.
A nossa natureza, pecaminosa e endurecida, tem dificuldade em calcular semelhante inquietação.
Ela lhe provinha dos acontecimentos: o massacre dos inocentes, a fuga precipitada para o Egito, a perda de Jesus. Pobre Mãe, desde então ela não viveu mais!
Um único pensamento deve ter ocupado a sua alma: “Virão procurá-lo? Seria agora, quando me vejo separada daquele que é toda a minha vida?”
Ela lhe sobrevinha no calmo retiro de Nazaré da leitura dos livros santos. “O Cristo será entregue à morte”, dizia Daniel.
“Transpassaram minhas mãos e os meus pés, e contaram todos os meus ossos”, lhe explicava Davi.
Que pressentimentos deviam dar-lhe estas passagens!
Que terror secreto!…
Inquietação que trazia, enfim, o pensamento do pecado, e que era o mais terrível.
Ela sabia que o seu divino Filho era o Redentor, o Salvador; que ele vinha para resgatar os homens, e tomar sobre si todas as suas iniquidades. Triste pensamento enchia-a de admiração, mas também a mergulhava num terror horrível. A iniquidade de todos cair sobre o meu Filho, ó céus, que cargo terrível!
Um violento combate, diz S. Tomás de Vilanova, devia se travar nela então. Dois amores gigantescos estavam em luta no seu coração, como em uma arena: o amor de seu Filho e o amor do gênero humano, que devia resgatar1.
O primeiro lhe fazia aborrecer a morte, e o segundo lhe fazia aceitá-la. Ela era mãe, e o seu coração, com toda a sua energia, repelia a morte. Mas, como Mãe do Redentor, ela dizia ao gládio do dia da apresentação: “Oh! trespassai-me, antes de trespassá-lo!”
E, depois desta hora, decorriam os dias, cheios de alegria que lhe causava a presença do seu Jesus. Mas também cheios de amargura e dos sofrimentos, que trazia ao seu coração este pensamento constante: um dia ele será imolado!
Apertando nas suas as mãos tão ternas de Jesus, parecia sentir já os pregos que deveriam atravessá-las.
Abaixando a sua fronte tão pura, ela já sentia a coroa de espinhos. Estreitando-o ao coração, ela já o contemplava, em espírito, coberto de sangue e de feridas, com o lado aberto e derramando por sobre os homens, até à última gota, o seu sangue divino.
Ó dor e angústia da ternura materna!
Como em liras perfeitamente acordes, que ressoam uníssonas, a oblação de Jesus era a oblação de Maria.
Seus corações estavam inebriados juntamente, com o pensamento do sacrifício. Depois, veio a hora da separação.
Jesus começa a sua vida pública. Novos temores para Maria! Sem dúvida, o dia do sacrifício se aproxima a grandes passos!
Ela o prevê e o espera. O ódio dos fariseus já lhe é conhecido. Perseguem o seu Jesus. Querem apoderar-se dele. Depois, numa tarde, vêm-lhe dizer: Jesus está preso.
Gente armada de bastões, cordas e gládios, prendeu-o no Getsêmani, guiada por um traidor, e o conduziu a Caifás.
Oh! que nos reserva o dia de amanhã?…
Que terrores não sentiu esta desolada Mãe!…
Jesus está preso! E ela é impotente para libertá-lo, para aliviá-lo. Jesus, longe dela, nas mãos de seus mais implacáveis inimigos! Que tristeza, que dor!… estar separada de um Filho tão amado, já condenado infalivelmente, de antemão, e nada poder fazer para unir-se a ele!
É o supremo sofrimento!
Que terror, quando lhe dizem: Quem o julga é Caifás, é Pilatos, é Herodes.
Pobre Mãe! Quantas dores!…
E quando ela reencontrou o seu Filho na encosta que conduz ao Calvário, ele havia sofrido de tal modo, desde a sua separação que lhe apareceu como não tendo mais algo de humano! Isaías lho havia feito compreender. E o seu coração não a enganara.
Que momento, quando os seus olhares se encontraram!
“Meu Filho!”
“Minha Mãe!”
E Jesus subia até ao lugar de execução; e Maria, acompanhada de algumas piedosas mulheres, seguia o “Homem das Dores”.
Enfim, eis que o Cordeiro de Deus chegou até ao cume do Gólgota.
Maria bem sabia que ele devia ser o Homem das Dores. Mas, quando a realidade veio e apareceu aos seus olhos, quando ela percebeu o corpo de seu Filho dilacerado e triturado pelos azorragues da flagelação da manhã, quando ela viu o seu rosto, extenuado e 1rreco·nhectvel, jorrando sangue, inundado do suor da morte, a cabeça encerrada num feixe de espinhos, o brado de sua alma foi: “Oh! como os profetas o haviam dito bem! E como são sobrepujados os meus receios! Em que estado, pois, puseram o meu Bem-Amado!”
De fato, as suas suspeitas e suas previsões eram excedidas. As profecias estavam realizadas ao pé da letra.
Agora compreendia melhor o sentido da palavra de Isaías; o seu coração de mãe se esforçava por compreender toda a extensão do “Ele será o Homem das Dores!”
Seu espírito e seu coração procuraram penetrar a fundo o sentido destas outras palavras: “Transpassaram minhas mãos e meus pés e contaram todos os meus ossos”.
Pobre Mãe, ela havia interpretado que eles contariam os seus ossos, depois que ele estivesse morto, ao passo que ela mesma poderia contá-los, no corpo rijo do seu Filho.
Chegou o momento supremo do holocausto!
Lágrimas e gemidos dos mártires nunca se podem igualar, mesmo em conjunto, à vivacidade e à imensidade das dores que a divina Mãe sofreu no seu peito oprimido!
Tão cruel era ao seu coração o espetáculo do deicidio, que se desenrolava ante seus olhos.
Os algozes lançam Jesus sobre a cruz. Ela percebe então os cravos com que vão pregá-lo; ela ouve os golpes do martelo; ela vê a crueldade do suplicio, que jamais fora aplicado às vitimas imoladas no templo, ou aos criminosos executados fora dos muros.
Os buracos preparados na madeira da cruz, estão demais afastados; e eles empregam cordas, para puxarem violentamente os membros, que neles devem ser pregados.
Ela ouve o estalar dos ossos, vê os músculos torcerem-se e percebe os suspiros de sofrimentos e os gemidos do seu Filho. Ergue-se, enfim, a cruz, e com que sofrimento balança-se um instante no ar, por cima dos assistentes, e fixa-se no solo.
Sobre a cruz o corpo suspenso do Filho de suas entranhas… É a Mãe das dores, em face do Homem de dores, pôde dizer, a nós e aos pecadores de todos os séculos: “Ó vós que passais por este caminho, considerai e vede se há uma dor semelhante à minha dor!”
E todos os séculos lhe responderam: “A quem comparar-vos, ó Virgem, filha de Sião? O excesso dos vossos males é semelhante à extensão dos mares”.
Sim, o profeta procurara em toda a natureza a quem poderia comparar a imensidade desta dor, que o Espírito santo lhe mostrava numa visão longínqua, e não encontrou senão o mar, cuja extensão, profundidade e largura puderam figurá-la.
E esta dor, cuja amargura tinha o infinito, o horroriza, pois é o preço da salvação da humanidade; a Santíssima Virgem vem colocar-se, heroica e sublime, ao lado da cruz.
“Stabat”! Ela estava em pé! Esta única palavra basta para narrar o prodígio de sua intrepidez, assim como as palavras: “Faça-se a luz”, fiat lux, haviam sido suficientes para dizer, desde a origem, que milhares de focos foram acesos no firmamento.
Jesus está abandonado por todos na terra, mas a sua Mãe está de pé ao seu lado. Ela reconhecia, através de todas as suas humilhações e de todos os seus sofrimentos, o Cristo Redentor, o Homem das dores, vitima de seu amor, o Homem-Deus.
Ela fica aí, de pé! E esta Virgem, seguramente a mais delicada e a mais tímida de todas as virgens, afronta os fariseus, os carrascos, a multidão, e até o inferno desencadeado contra o seu Filho.
Ela contempla as suas chagas lívidas, os cravos que o contundem, o sangue que o cobre, todos estes sofrimentos e todas estas dores que o esmagam em um como lagar. E, esmagada ela mesma, sucumbe a estas chagas, a estes cravos, a este esmagamento, a este esgotamento.
É a paixão e a compaixão ao mesmo tempo.
Seus olhos se encontram, seus olhares se confundem, seus corações comunicam entre si os seus pensamentos, por uma linguagem secreta e cheia de ternura.
Ele se oferece, e ela o oferece pelos nossos pecados.
Jesus diz: “Perdoai-lhes”. E Maria pede com ele este perdão.
Jesus diz: “Tenho sede”. E, com ele, Maria, tem sede, sede de almas.
Ele diz: “Tudo está consumado”. Ele deu tudo, e ela também deu tudo, não poupando sequer o seu próprio Filho, nem a si mesma.
Ele dá um alto grito e expira. Ela não pode expirar, mas o seu coração entra nos transes da morte2.
E quando o despregaram da cruz e o puseram nos braços de sua Mãe, ela pôde, então, contemplar à vontade este corpo desfigurado e lívido, coberto de chagas e de sangue; ela pôde sondar as chagas das mãos e dos pés, a chaga do lado, sobretudo, que dava entrada ao seu coração. Um último brado escapava-se do seu coração de Mãe:
“Meu Filho!”
Ó terna Mãe! dai-nos a graça de compreender este oceano de angústias e de torturas que fizeram de vós a “Mãe das dores”, para que participemos um dia das vossas dores por nós e vos consolemos pelo nosso amor e nossa fidelidade!
1 Pugnabant igitur in Virginis corde, ut in campo plano, duo illi gigantes amores, amor Filii et amor mundi, sensumque Virginis in diversa trahebant.
2 Jos. Lémann : op. cit., c. II.
(Fonte: livro Por Que Amo Maria, Ed. Vozes, 1945, Cap. XV – As Dores de Maria, pp. 480-486 – Texto revisto e atualizado)