A MENSAGEM DE SÃO BENTO AO MUNDO DE HOJE
(Continuação do post anterior)
1 – CONVERSAÇÃO DOS COSTUMES OU CONVERSÃO DOS COSTUMES
Que é isso? É a Unificação da vida em Deus, conversão de vida que é profundamente evangélica. S. Marcos, na sua pregação, diz: “Convertei-vos e crede no Evangelho.” Este seria propriamente o sentido de conversão: mudar de vida, do errado para o certo; seria retomar o caminho de volta ao bem, à justiça, ao amor, à misericórdia, da aceitação de nós mesmos e da aceitação do outro. A conversão dos costumes exige, portanto, uma convergência de todos os atos de nossa vida em Deus, para nEle ser unificada. Aí está o grande conteúdo e o grande apelo para nossa vida cristã de hoje.
Vivemos num mundo extremamente dispersivo: dispersão nos meios de comunicação social, que nos levam às competições da vida num mundo cada vez mais movimentado e agitado. É no meio de tudo isso que o cristão tem de unificar, reunificar a sua vida em Deus. No dia de seu batismo, o cristão assumiu o compromisso de viver nessa unificação que o levará a Deus, centro de sua vida, fazendo de tudo por Ele, em honra dEle e extraindo daí sérias consequências que vão sendo descobertas pouco a pouco. Por isso, uma vida longa é uma grande graça, dizia Santa Teresa de Ávila, porque nos dará tempo para progredirmos harmoniosamente nessa conversão de vida em Deus e para Deus.
A conversão, que para um monge é objeto de um voto, para o cristão, que deseja levar a sério sua vida cristã, é o objeto do cumprimento do compromisso do seu batismo.
Hoje se fala muito de monaquismo interiorizado: Paul Evdokimov, leigo teólogo ortodoxo, defendeu essa tese. Precisamos ficar alertas, no entanto, quando falamos nessa conversão contínua, para não cairmos numa piedade intimista alienadora, esquecendo-nos de que nossa conversão deve ter dimensão social, que implica uma abertura para os irmãos, principalmente os mais pobres, tendo em vista uma ação libertadora.
O pecado social está aí, com consequências desastrosas para a humanidade, principalmente para os povos da América Latina, e se caracteriza por uma estrutura social injusta e pecaminosa. São Bento, quando insiste na partilha dos bens, parece que está falando hoje para nós da América Latina.
Não podemos deixar de mencionar um grande problema de nossa época, que é o consumismo, levando-nos a ampliar, cada vez mais, a faixa da comodidade. Entramos nessa espécie de consumismo de tal forma que, quem passa a dirigir a nossa vida é a televisão e outros meios de comunicação. Muda-se de casa e de carro como se muda de roupa, e com isso, os ricos vão se tornando cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.
São Bento, quando nos convida á conversão dos costumes, ensina-nos a austeridade, a sobriedade, a discrição que equilibra as necessidades de ter, convidando o homem a um trabalho consigo mesmo, no sentido de ser, primeiramente. É o ser, prevalecendo sobre o ter.
Sabemos que os pobres não são todos idealistas evangélicos; muitos gostariam até de estar no lugar dos ricos. Contudo, é preciso que os ricos percebam que sua posição é pouco fraterna e muito injusta, porque eles estão tendo sempre mais, enquanto que os outros estão tendo cada vez menos. Falta-lhes a satisfação das necessidades básicas, segundo as categorias existenciais de ser, ter, fazer e estar, e segundo as categorias axiológicas ou de valores: subsistência, produção, afeto, entendimento, participação, lazer, criação, identidade, liberdade. Esse problema é muito complexo, é estrutural e conjuntural de nossa sociedade, mas a caridade, a austeridade e a sobriedade de cada um de nós, dos grupos, das comunidades e da própria Igreja como um todo, serão grandes remédios para uma libertação e justiça sociais.
Se na civilização de bem-estar em que vivemos não houver um pouco de austeridade, não haverá esperança de construir uma cidade mais humana e cristã.
2 – PAX BENEDITINA
Vivemos num mudo de violência e, às vezes, achamos que a violência se combate com violência. São drogas, assassinatos, sequestros, corrupções que infestam a nossa sociedade, violência do sexo que nos casam indignação.
São Bento resolveu, no seu tempo, o problema da violência dos bárbaros latinos do Império Romano, que destruíram numerosos valores, com a Pax Beneditina, abrandando a violência.
Hoje o que a Igreja pede do cristão é que ele seja o artífice da paz, um mártir da unidade libertadora.
O lema da Paz que está nos nossos mosteiros traduz o equilíbrio da ordem que está ligado a um grande amor à caridade, à mansidão de que S. Paulo fala no capítulo 13 da primeira Carta aos Coríntios, quando canta o hino da Caridade. A caridade tudo suporta – e diante de um mundo violento, não reagir à violência é muito difícil. Só uma caridade profunda poderá nos sustentar.
Não ser violento não quer dizer não denunciar os erros; temos que denunciar a injustiça pelo anúncio profético de nossa vida, pelo testemunho da palavra vivida que recria o mundo e o ambiente em que vivemos; e para isso acontecer, temos de experimentar Deus em nossa vida, através da oração, que é participação na Liturgia como um todo, num dinamismo que não dissocia os acontecimentos de nossa vida e da História, mas que deve ser celebrativa e não estática ou simplesmente ritualista.
Às vezes somos também chamados a denunciar, não só com a vida, o que é imprescindível, mas também com palavras, atitudes e até com o martírio, se for preciso, por causa do Reino de Deus.
3 – ORA ET LABORA
É um lema que não está expresso na Regra, mas já é considerado pacificamente o lema beneditino: Ora et Labora – reza e trabalha. Essa mensagem é também muito apropriada para o homem contemporâneo. O homem moderno está tão mergulhado no universo da ação, que não tem tempo para perguntar, nem a capacidade de refletir o que faz e por que faz. Há quem tenha dito: “No princípio era a ação”, em oposição a S. João, que disse: No principio era o Verbo, por quem foram feitas todas as coisas, e sem Ele nada foi feito. Por isso é que nEle estava a vida e a vida era a LUZ dos homens.
Nessa fórmula, Ora et Labora, São Bento busca a unidade entre fé e vida. Organizou a vida dos mosteiros com momentos de oração e de contemplação alternados com o trabalho, tornando os monges cocriadores e coconstrutores de um mundo novo com Jesus Cristo. Não é que exista, de um lado, oração, e de outro, trabalho, mas o que se vê é a oração consagrando o tempo e a vida dos homens, através do Opus Dei, que já é em si mesmo um grande trabalho, um grande Ofício de Deus. Essa espiritualidade – Ora et Labora – teve e tem ainda um valor muito grande na vida do homem moderno; encheu de oração e elevação o trabalho de muitos cristãos, Somos também cocriadores e coconstrutores de um mundo novo com Jesus Cristo.
Houve, no entanto, e há ainda, aqueles que descobriram o caráter divino e crístico da criação e do trabalho como forma de colaboração humana na ação divina, valorizando a tarefa transformadora do homem, no mundo que lhe foi entregue inacabado por Deus, o que é verdade; esses, no entanto, inverteram a ordem do lema Ora et Labora para Labora et Ora. O que aconteceu, no entanto, é que esta espiritualidade do caráter divino da matéria e do trabalho levou a um esvaziamento da oração e da expressão litúrgica. Dentro destas reflexões, a oração continua tendo seu lugar e valor, mas sua autenticidade se mede pela qualidade de expressão na prática, no relacionamento humano e social, na nossa realidade sócio-cultural da América Latina. Não pode ser uma oração desencarnada.
O que se quer hoje é uma oração transformante e transformadora, tanto no sentido pessoal, quanto no sentido social; oração compromissada com toda a Igreja, principalmente com a Igreja sofredora, perseguida, oprimida, constituída pelos pobres, injustiçados, não excluindo os pobres de fé, escravos de vícios, do pecado de toda forma de escravidão, desses que não atraem a atenção de ninguém sobre si.
O importante é que a oração não se torne um ritual apenas, mas que se torne Vida e que, no dizer de São Bento, nossa mente concorde com nossa voz.
O Cardeal Pirônio disse: “A Igreja da América Latina se quiser ser realmente a Igreja da Páscoa (e Páscoa é renovação, vida nova, recriação, dinamismo), pobre, missionária e libertadora do homem, tem que ser fortemente contemplativa. Somente a partir da contemplação, entenderemos plenamente o homem, seremos capazes de descobrir os sinais do tempo e nos comprometeremos ativamente com os pobres”. A Igreja Latino-americana espera do cristão a opção ou amor preferencial pelos pobres, assim explicita o documento de Puebla. Penso que o amor preferencial pelos pobres não tem nada de demagógico, mas tem o sentido evangélico. Não amar somente aqueles que não têm nada, mas também os idosos, os carentes, os aflitos, os abandonados ricos ou pobres.
Cristo, no capítulo 4 de S. Lucas, caracterizou sua missão como sendo a de evangelizar os pobres e diz: Bem-aventurados os pobres em espírito. Não podemos amar preferencialmente os pobres se não somos pobres, no sentido pleno da palavra pobre, evangelicamente pobres, materialmente e em espírito. A plenitude da pobreza está no sentido que Lucas e Mateus dão da pobreza.
A nossa vida tem que ser coerente com a nossa fé.
4 – VIDA COMUNITÁRIA
A vida comunitária e de partilha é também uma outra característica da vida beneditina.
São Bento, na realidade, quando fundou o Mosteiro, não fundou uma Ordem e sim, uma comunidade. As doze comunidades, mosteirinhos de Subiaco, depois o grande Mosteiro de Monte Cassino, foram comunidades vivas e fraternas.
A vida comunitária foi uma realidade da Igreja primitiva, como vemos nos Atos dos Apóstolos: Eles tinham tudo em comum, não havia necessidades entre eles.
No documento de Puebla e no de Medellin fala-se muito das comunidades eclesiais de base. Para vivermos em sintonia com a Igreja hoje, na América Latina, não nos podemos esquecer da importância das CEBs.
As comunidades Eclesiais de Base como ideia original da pastoral latino-americana, surgiram na década de 50 e se formaram na década de 60, existindo atualmente em todos os países da América Latina, principalmente entre a população pobre do campo e da periferia das cidades. Na classe média, praticamente não existem, e muito menos na classe rica. As CEBs, na sua pureza, dão um valor todo especial à Palavra de Deus e aos sacramentos, constituindo-se em verdadeiras comunidades de fé, de vida, de amor e de oração. Como células eclesiais vivas, preocupam-se com a evangelização, com o testemunho comunitário, e, sendo inseridas na realidade da vida, atuam como fermento de libertação contra tudo que oprime as pessoas.
Penso que os presentes aqui não ignoram a sua existência e, muitas vezes, até deformada, o que é uma pena. As CEBs são de natureza evangélica. Conhecê-las somente não basta. Devemos procurar implantar entre os grupos o espírito das CEBs e expandi-las no meio onde vivemos, pois, conforme as conclusões de Medellin, as CEBs, na pluralidade de suas formas concretas, constituem a “célula inicial” de estruturação eclesial e foco de evangelização e, atualmente, constituem fator primordial de promoção humana e desenvolvimento.
Este é o desejo da Igreja, manifestado também nas conclusões da conferência de Puebla, quando fala em “linhas pastorais” no parágrafo 648: “…é preciso procurar como possam, as pequenas comunidades que se multiplicam, sobretudo na periferia e nas zonas rurais, adaptar-se também à pastoral das grandes cidades do nosso continente “.
Não se trata, para nós, de criarmos um movimento a mais, mas de darmos aos grupos aos quais pertencemos uma expressão concreta da Igreja, sacramento visível da presença e da ação Cristo entre os homens e a serviço deles.
Fica aí uma sugestão …
D. Abade Paulo Rocha, do Mosteiro de São Bento da Bahia, num artigo, escreveu que os próprios monges estão à procura de uma resposta da vida baseada nos valores comunitários ressaltados nas Regra Beneditina, no contexto da América Latina, que propugna as CEBs como meios de evangelização.
Porque não procuramos, então, rever em nossos grupos esses valores, assim resumidos:
– Vida comunitária fraterna e de partilha, tendo como centro a Celebração Eucarística e sacramental como fato celebrativo de nossa vida hoje;
– Oração que leve a uma ação libertadora através da palavra de Deus que ilumina a história de nossa vida e a história da sociedade e da Igreja.
– Evangelização, fruto de um testemunho comunitário e missionário.
Terminando, acho que os quatro pontos abordados sobre a Regra de S. Bento:
CONVERSAÇÃO OU CONVERSÃO DOS COSTUMES,
PAX BENEDITINA,
ORA ET LABORA E
VIDA COMUNITÁRIA,
São temas que trazem uma mensagem evangélica para todos os homens e mulheres de qualquer tempo e lugar e de qualquer idade.
Penso também que, vivendo tudo isso, estaremos dando uma grande contribuição no sentido de construir a esperança na grande cidade, atinando para uma nova cultura, que está aflorando no continente e a que a Igreja está procurando dá uma resposta, o que é um grande desafio para ela, cultura está capaz de, resgatando os valores autênticos, acompanhar a modernidade que aí está.
Podemos perguntar agora: Quem era São Bento? Bento, um homem venerável, bento pela graça, pela vida e pelo nome.
Um homem da era “pós-pós”: pós-capitalismo e pós-comunismo, um homem que nos pode ajudar a construir a esperança na grande cidade, através da mensagem cuja reflexão acabamos de fazer.
Ele nos propõe humildade, esperança, caridade, ou seja, conversão, oração e trabalho, paz e comunidade fraterna que são os remédios para o mundo de hoje.
________excertos da transcrição de palestra
proferida pela autora da obra em Itapecerica-MG,
na festa de São Bento, Padroeiro da Cidade, em 13.07.1990.
(Fonte: livro A Regra de São Bento Aplicada à Vida de seus Oblatos e Oblatas, Ivone Leite de Faria, Preâmbulo, Edições Subiaco 2ª edição/2009, pp. 22-31)