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Casa de Deus e Porta do Céu
Casa de Deus e Porta do Céu
Quem, dentre os filhos de Adão, está isento de defeitos? Falhas físicas, lacunas morais, deficiências de caráter… a alguma debilidade, todos estão sujeitos! Todos, exceto Maria.
Poucas figuras há mais respeitáveis que os patriarcas da Antiga Aliança – Abraão, Isaac e Jacó –, cuja história o Divino Espírito Santo quis perpetuar nas páginas das Sagradas Escrituras. Suas vidas se desenrolaram carregadas de promessas e simbolismos, e o infortúnio com o qual Jacó se deparou em sua juventude é disso um exemplo cogente.
Estando Isaac, seu pai, já idoso, doente e com as vistas enfraquecidas, recaiu sobre os ombros de sua mãe, Rebeca, a responsabilidade sobre a família, em especial quanto ao porvir dos dois filhos.[1] Entre ambos, porém, se estabelecera uma profunda inimizade, e Esaú procurava matar Jacó.
Que proteção poderia ela dar ao filho mais novo, tão bom e inocente, mas incomparavelmente inferior em força física ao mais velho? Com o coração dilacerado, Rebeca não encontrou outra solução: mandou Jacó para uma terra distante, onde poderia hospedar-se na casa de um parente, Labão, escapando assim da fúria de Esaú. Tendo se despedido dos pais, talvez julgando que jamais os tornaria a ver, partiu o depositário da promessa.
Sem as atuais facilidades de locomoção, a viagem havia de durar vários dias. Assim, quando o Sol se pôs ao fim da primeira jornada, o jovem tinha ainda longo caminho a percorrer. Deteve-se então para descansar, sem outra comodidade que uma pedra por travesseiro. Na escuridão daquela noite, algo sublime aconteceu: em sonho, Jacó viu uma imensa escada, na qual Anjos subiam e desciam. Despertando de seu sono, exclamou: “Quão terrível é este lugar! É nada menos que a casa de Deus; é aqui, a porta do Céu” (Gn 28, 17).
A Casa que Deus construiu para Si
Quiçá o grandioso Templo de Salomão, edificado séculos depois por mãos peritas, mas humanas, com madeiras preciosas, mas perecíveis, tenha sido o mais esplendoroso reflexo da “casa de Deus” que Jacó contemplou naquela ocasião. Contudo, a verdadeira Casa de Deus tem Ele mesmo como arquiteto e sua memória não perecerá: todas as gerações a proclamarão bem-aventurada (cf. Lc 1, 48), porque Aquele a quem os Céus e a terra não puderam conter, recolheu-se em seu seio.
Tal Templo é Maria Santíssima, em quem “Deus habitou não só por natureza, por essência, presença e potência, como no mundo; não só pela graça, pela fé, esperança e caridade, como na Igreja; não só pela glória, pela visão do Sumo Bem, pela fruição e posse perpétua desse infinito tesouro, como no Paraíso; mas está presente n’Ela por inabitação corporal”.[2]
Embora no tempo Maria não tenha sido a primeira das criaturas a sair das mãos do Altíssimo, antes mesmo que os peixes pululassem nas águas, as aves cruzassem o ar e os frutos se multiplicassem na terra dadivosa, Deus já sabia o seu nome e A escolhera para Si. Outro não é o ensinamento da Santa Igreja, expresso por Pio IX na Bula Ineffabilis Deus: “[O Criador] elegeu e distinguiu, desde o princípio e antes dos tempos, uma Mãe para que seu Filho Unigênito, feito carne d’Ela, nascesse na ditosa plenitude dos tempos; e tanto A amou acima de todas as criaturas, que só n’Ela Se comprouve com notabilíssima benevolência”.[3]
Quem como Maria?
Na primavera da vida, as esperanças iluminam o caminho do homem, os sonhos povoam-lhe a mente e o futuro o convida, sorrindo. Entretanto, não há quem não experimente, passados poucos ou muitos anos, aquilo que denominamos frustração, seja quando expectativas não são atingidas, seja quando algo poderia ter sido melhor do que foi. Entretanto, os mais cruéis desapontamentos, que ferem o cerne da alma, não são causados quando anseios ou projetos fracassam, mas quando outrem, a quem se admirava, revela-se não tão perfeito quanto se imaginava, ou até mesmo indigno de tal consideração.
Ora, quem dentre os descendentes de Adão está isento de defeitos? Falhas físicas, lacunas morais, deficiências de temperamento ou de caráter… Ao menos a uma debilidade, todos estão sujeitos! Todos, é verdade, exceto Maria, a qual é porto seguro para orientar e fortalecer os que se encontram desnorteados entre as decepções do convívio terreno.
Dentre todas as pessoas humanas, Nossa Senhora é a única que não poderia ser melhor do que é,[4] pois convinha Àquela a quem Deus chamaria “Mãe” ser tão pura que impossível fosse conceber pureza maior, fora de Deus.[5] Nos dias sem princípio da eternidade, o Criador “pensou” em Maria e, em seu amor de predileção, não poderia tê-La concebido mais perfeita.
Esta é uma verdade construída sobre sólidos fundamentos, e não apenas um jogo de palavras e ideias organizadas com intuito literário para alentar almas sem esperança.
Bendita por seu fruto e por sua santidade
São Boaventura[6] ensina que se pode contemplar a Santíssima Virgem sob três aspectos: na graça de sua concepção, na graça da santificação e na sua natureza corporal.
Apesar de filha de Eva, Nossa Senhora não herdou a natureza degradada pelo pecado, e suas qualidades humanas são excelentes no mais alto grau. Basta mencionarmos que sua inteligência, por exemplo, além de robustecida pela ciência infusa, é tão penetrante e abrangente que supera a de todos os sábios da História, como explica São Bernardino de Sena: “Quão grande é a diferença entre o vosso entendimento e o de Maria? É enorme, como a de entender a pata de uma mosca e compreender todas as coisas. […] Mas deixai-me dar um exemplo melhor: tomai o entendimento de todos os homens instruídos e considerai o que eles compreendem sobre as criaturas de Deus, e ainda acrescentai Santo Agostinho, que, contemplando-as, disse muito do que há de nobre sobre elas: eu digo que tudo isso não é nada em comparação com o entendimento de Maria”.[7]
Sobre essa natureza sem mancha, Deus derramou graças abundantes e insondáveis, como indica a saudação que o Arcanjo São Gabriel Lhe dirigiu na Anunciação: “Ave, cheia de graça”.
Para compreendermos a realidade expressa pela palavra cheia, é preciso considerarmos o tamanho do recipiente. Um dedal pode estar repleto, é verdade, mas não abarcará a mesma quantidade que um grande barril que se encontre, também ele, completo até à borda. Ora, qual seria o volume do tesouro guardado num “vaso” capaz de conter o Infinito, o próprio Deus? Tal é Maria, e assim vislumbramos a grandeza à qual nos reportamos ao chamá-La “cheia de graça”.[8] Os Padres – latinos e gregos – não ousaram, em sua sabedoria, medir a graça que habita na alma de Maria, considerando-A um abismo insondável para quem não é Deus.[9]
Ao longo dos tempos, a Igreja buscou termos à altura para se referir à elevação de Maria, mas não os encontrou. A piedade dos fiéis logrou apenas consagrar o termo Santíssima Virgem, reservando-o exclusivamente a Nossa Senhora. Resumindo séculos de tradição e de Teologia, Pio IX conferiu o selo da autoridade papal a esse privilégio mariano, ao proclamar o dogma da Imaculada Conceição: “[Deus] A cumulou tão maravilhosamente da abundância de todos os carismas celestiais, tirada do tesouro da divindade, muito acima de todos os Anjos e Santos, que Ela, absolutamente sempre livre de toda mancha de pecado, e toda formosa e perfeita, manifestou tal plenitude de inocência e de santidade que não se concebe de modo algum maior depois de Deus e ninguém pode imaginar fora de Deus”.[10]
Fortemente acostumados com a competição que reina na sociedade hodierna, marcada pela mentalidade egoísta segundo a qual o maior sempre deve esmagar e desprezar os que lhe são inferiores, corremos o risco de refletir tal modo de ser em Nossa Senhora, julgando, ainda que de maneira implícita, que Ela desprezará todos os outros seres que Lhe estão abaixo, ou que, entretida com a própria santidade, nem mesmo os considere. Nada poderia ser mais distante do amor que transborda de seu Imaculado Coração! Assim exclama São Bernardo: “A todos abre o seio de sua misericórdia, para que todos recebam de sua plenitude: o cativo, sua liberdade; o enfermo, sua cura; o pecador, o perdão; o justo, a graça; o Anjo, a alegria; enfim, a Trindade a inteira glória, e o Filho sua carne humana. Não há nada que escape de seu calor”.[11]
Casa de Deus… e Porta do Céu!
Para melhor compreendermos a incomensurável bondade da Santíssima Virgem, lembremos um fato narrado por Da. Lucilia Corrêa de Oliveira.
Ainda menina, morava ela numa casa espaçosa e digna, na pequena cidade de Pirassununga, no interior de São Paulo. Seu pai era advogado e defendia diversas causas na região, garantindo uma existência honrada para os seus. Entretanto, houve certa circunstância em que as reservas da família se esgotaram, e lhe restou uma única moeda… Sereno porque a despensa se encontrava abastecida, ele prosseguiu a rotina familiar, à espera de que a situação melhorasse. Foi quando bateu à porta da casa um esmoler que, implorando uma caridade, estendeu-lhe o chapéu. O chefe da família pegou então aquela última moeda e, confiando que Deus cuidaria do futuro, deu-a àquele homem.
Ora, Nossa Senhora não tem só uma moeda, mas a plenitude da santidade. E, incomparavelmente maior que a compaixão do pai de Da. Lucilia naquela ocasião, é a misericórdia de Maria quando nós, com humildade, estendemos a Ela nossa mão e suplicamos auxílio.
No sonho de Jacó, pela escada desciam e subiam Anjos; por Maria, desceu à terra o próprio Deus, e é por Ela que todos os homens podem subir sem temor até o Altíssimo. Sendo Mãe de Cristo, Nossa Senhora tornou-Se o elo que uniu Deus ao homem e, em consequência, o homem a Deus. Assim, Ela não é apenas a “Casa de Deus”, mas também a “Porta do Céu”.
Muitos são os Padres que, por esse motivo, elevaram a voz para louvá-La: “Assim como Jacó contemplou o Céu unido à terra pelos extremos da escada, assim também Tu [Maria], desempenhando o ofício de mediadora, uniste o que havia sido rompido”;[12] “Deus Te salve, cheia de graça, mediadora entre Deus e os homens, para que, destruído o muro de inimizade, unam-se as coisas celestes e as terrestres”.[13]
Quiçá esteja Maria à espera de que a humanidade se apresente humilhada, com o chapéu à mão, reconhecendo-se doente, pecadora e cativa, para lhe abrir tesouros de graça até agora desconhecidos. Sim, Nossa Senhora anseia por derramar sua misericórdia sobre essa humanidade que, ao longo dos séculos, tanto procurou o caminho ascensional do progresso, mas ignorou a única Escada segura pela qual deveria subir; humanidade que almejou realizar-se neste mundo, buscou em vão um atalho para a felicidade, mas se distanciou d’Aquela que é a Porta do Céu.
Quando isso se der, em Maria o mundo terá encontrado a paz e dará à Trindade a glória devida; então Nossa Senhora instaurará o seu Reino, pois “foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo”.[14]
_______________Ir. Maria Beatriz Ribeiro Matos
_____Notas
[1] A esse respeito, ver o artigo A promessa de Abraão nas mãos de uma mulher, nas páginas 24 e 25 da presente edição.
[2] SÃO LOURENÇO DE BRÍNDISI. Marial: María de Nazaret, Virgen de la plenitud. Madrid: BAC, 2004, p.103-104.
[3] PIO IX. Ineffabilis Deus, n.1.
[4] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.25, a.6, ad 4.
[5] Cf. SANTO ANSELMO DE CANTUÁRIA. Oratio VII. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1953, t.II, p.318.
[6] Cf. SÃO BOAVENTURA. In I Sent., dist.44, dub.3. In: Opera Omnia. Parisiis: Ludovicus Vivès, 1864, t.II, p.161.
[7] SÃO BERNARDINO DE SIENA. Sermons. Siena: Tipografia Sociale, 1920, p.103.
[8] Cf. CONRADO DA SAXÔNIA. Speculum Beatæ Mariæ Virginis. Florentiæ: Quaracchi, 1904, p.60-61.
[9] Cf. TERRIEN, SJ, Jean Baptiste. La Madre de Dios y Madre de los hombres: según los Santos Padres y la Teología. Madrid: Voluntad, 1928, t.II, p.243-244.
[10] PIO IX, op. cit.
[11] SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Sermón en el Domingo de la octava de la Asunción. In: Obras Completas. 2.ed. Madrid: BAC, 2006, v.IV, p.397.
[12] SÃO JOÃO DAMASCENO. Or. I. In Dormit., apud ALASTRUEY, Gregorio. Tratado de la Virgen Santísima. 3.ed. Madrid: BAC, 1952, p.719.
[13] BASÍLIO DE SELÊUCIA. Or. in Annunt., apud ALASTRUEY, op. cit., p.719.
[14] SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, n.1. 46.ed. Petrópolis: Vozes, 2015, p.19.
(Fonte: in Revista Arautos do Evangelho, N° 245, Maio/2022, pp. 16-19)