Com o que teria sonhado a esposa de Pilatos?
Um pequeno detalhe do Evangelho chamou a atenção dos teólogos e literatos ao longo dos séculos: um sonho da esposa de Pôncio Pilatos, a partir do qual ela tentou salvar Jesus da condenação à morte. Mas, afinal, com o que ela teria sonhado?
O Evangelho de São Mateus contém um pequeno detalhe ausente dos outros relatos da Paixão. A esposa de Pôncio Pilatos manda uma mensagem a ele pedindo que não faça nada com Jesus, porque ela tivera um sonho terrível e sofrera muito por causa dele [1]. Ela diz que Jesus é inocente (cf. Mt 27, 19).
A partir deste versículo, a tradição e a literatura desenvolveram uma grande história de conversão. Nas Igrejas orientais e etíopes, a esposa de Pilatos — chamada Cláudia ou Prócula — é venerada como santa. O Evangelho de Nicodemos (influente, apesar de apócrifo) menciona o sonho dela e a reação de Pilatos ao sonho: neste relato, ele se mostra mais preocupado do que indica o Evangelho de S. Mateus. Anás e Caifás convencem-no de que o sonho e a perturbação de sua esposa são sinais de que Jesus é um feiticeiro, e Pilatos dá sequência ao julgamento.
Segundo o ensinamento de Orígenes, um dos Padres gregos da Igreja [2], Cláudia Prócula tornou-se cristã após a Ressurreição, por causa desse sonho. As York Mystery Plays incluem como personagem a esposa de Pilatos e falam de seu sonho, mas com uma interpretação oposta: Satanás aparece para tentar a esposa de Pilatos e fazê-la impedir seu marido de condenar Jesus à morte, a fim de frustrar o propósito de Jesus de redimir e salvar-nos através de sua Cruz e Ressurreição. As York Mystery Plays eram encenadas na solenidade de Corpus Christi para contar a história da Salvação desde a criação até o Juízo final. Cada peça era organizada e dramatizada por uma guilda diferente. Elas foram suprimidas durante o reino de Elizabeth I, em 1569, mas têm sido revividas em produções modernas.
A romancista de mistérios inglesa Dorothy L. Sayers escreveu The Man Born to Be King (“O homem nascido para ser rei”), uma série de radioteatros para a BBC durante a II Guerra Mundial. As peças, transmitidas mensalmente, contavam a história de Jesus, do Natal à Ressurreição. Foi controverso, à época, o uso pela autora do inglês coloquial, pois as pessoas estavam acostumadas com o estilo arcaico da tradução bíblica (sendo a King James a mais famosa em inglês).
Cláudia, a esposa de Pilatos, tem um papel recorrente de coadjuvante em várias das peças. Primeiro ela faz contato com uma mulher cuja filha fora curada por Jesus; depois ela testemunha Jesus proclamar: “Antes que Abraão fosse, eu sou” (em The Feast of the Tabernacles, “A Festa dos Tabernáculos”); por fim, ela e Pilatos veem-no entrar em Jerusalém, no Domingo de Ramos (em Royal Progress, “Procissão Real”). Pilatos diz à esposa que terá de condenar Jesus à morte. Ele precisa cooperar com as autoridades judaicas a fim de manter a paz e continuar ganhando o favor de César — e ela assente, porque o marido “não deve ofender César!” (em The King’s Supper, “A Ceia do Rei”). Depois de receber a advertência dela sobre o sonho em The Princes of this World (“Os Príncipes deste Mundo”), Pilatos desiste de condenar Jesus de imediato e passa a investigar as acusações contra Ele — mas, obviamente, ele termina condenando-o à morte no fim.
Enquanto Jesus está pendente na Cruz, por volta da hora nona (às 3h da tarde), Dorothy Sayers inclui uma cena na qual Pilatos pede a Cláudia que descreva o sonho que tanto a perturbou. Ela conta que estava a bordo de um barco e que ouviu um clamor; os céus ficaram escuros e o mar Egeu, agitado. O capitão do barco diz a ela que “o grande Pã está morto” [3]. Ela pergunta ao capitão como Deus pode morrer, ao que ele responde: “Você não se lembra? Eles o crucificaram. Ele padeceu sob Pôncio Pilatos.” Então, Cláudia escuta um coro de vozes repetindo as palavras do Credo dos Apóstolos: “Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”, com o nome de seu esposo repetido em diferentes idiomas. Parece um mau presságio para ambos que o nome de Pilatos esteja tão ligado a esse julgamento, lembrado através dos séculos (em King of Sorrows, “Rei das Dores”).
Na última peça, The King Comes to His Own (“O Rei vem para os que são seus”), Cláudia ouve dizer que Jesus ressuscitou dos mortos. Um pouco atordoada, tanto ela quanto seu marido ficam felizes por estarem deixando Jerusalém. Como a primeira reação de Cláudia à notícia da Ressurreição é invocar o deus romano Apolo, não fica claro como, depois, ela se tornaria cristã.
Assim como Dorothy L. Sayers em The Man Born to Be King, Gertrud von le Fort, autora de The Song at the Scaffold (“A Última ao Cadafalso”, em tradução portuguesa), retrata o sonho de Cláudia em The Wife of Pilate (“O Sonho de Pilatos”) como ela escutando as palavras do Credo: “Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”, Crucifixus etiam pro nobis sub Pontio Pilato, passus et sepultus est.
Mas onde a versão de Dorothy Sayers vê a esposa de Pilatos ouvindo essas palavras em diferentes vozes e idiomas, a versão de Von le Fort retrata Cláudia viajando no tempo desde as catacumbas, passando por uma basílica romana, passando pelas catedrais góticas, nas quais os coros entoavam as palavras, até edifícios ainda mais irreconhecíveis (para ela), com “cortinas estranhas”. Ela ouve a polifonia da Renascença com as palavras tecidas em diferentes fios de som. Sua visão é a da Igreja ao longo dos séculos proclamando o Credo niceno na Missa.
A breve história ou novela toma a forma de uma carta, escrita por uma escrava grega alforriada de Cláudia, contando os efeitos da condenação de Jesus por Pilatos na Sexta-feira Santa sobre Cláudia e o seu relacionamento com seu esposo. Cláudia procura pelos “nazarenos”, seguidores do Cristo ressuscitado, em Roma, e os ouve proclamar o Credo durante o seu culto. Ela participa de vários dos seus encontros, mas hesita em ser batizada, por causa da ação de seu esposo. Cláudia não recebe misericórdia e perdão da comunidade cristã e para de frequentá-la. Mas a perseguição de Nero aos cristãos depois do incêndio de Roma faz com que ela os procure de novo, e ela então recebe o seu batismo de sangue no Coliseu — ou seja, é martirizada. Não contarei como é o final, mas trata-se de algo assombroso, com as palavras ecoando no fundo: Crucifixus etiam pro nobis sub Pontio Pilato, passus et sepultus est…
Na Vigília Pascal não se recita o Credo niceno, mas todos renovamos nossas promessas batismais, enquanto os catecúmenos fazem seus votos. Os recém-batizados fazem, então, com toda a assembleia, antes de ser confirmados e receber a Sagrada Comunhão, uma profissão de fé em tudo o que a Igreja crê e ensina como divinamente revelado. Ao longo do Triduum, porém, ao participarmos dos três maiores dias e noites do ano litúrgico da Igreja, nós estamos professando nossa fé no Credo, juntando-nos ao coro de vozes que a Cláudia de Dorothy Sayers e de Le Fort escutou num sonho de Sexta-feira Santa em Jerusalém.
Para nós não é um sonho. Ele realmente é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).
______Notas
[1] Inúmeros Padres e escritores eclesiásticos (entre eles, Orígenes, S. Hilário, S. Jerônimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, S. João Crisóstomo, Eutímio etc.), além de intérpretes como Teofilacto e Maldonado, opinam que este sonho foi enviado por Deus à esposa de Pilatos por mediação de um anjo: primeiro, para que Cristo desse testemunho da própria inocência pela voz de ambos os sexos, isto é, tanto por Pilatos (cf. Lc 23, 14: “Não o achei culpado”) quanto por sua esposa (cf. Mt 27, 19: “Nada faças a esse justo”), assim como os demais elementos haveriam de testemunhá-la mais tarde, quando tremesse a Terra com a morte de Cristo; segundo, porque se o sonho fosse enviado apenas a Pilatos, ele provavelmente o teria calado, mas, enviado a mulher, poderia ser revelado ao marido perante os sacerdotes e judeus reunidos no tribunal; terceiro, para manifestar que Cláudia era honesta, compassiva e piedosa, da maneira que o sonho seria um sinal de que ela acreditava em Jesus como Messias e Salvador do mundo. Além disso, como escreve S. Agostinho, “na origem do mundo, uma esposa levou o homem à morte”, isto é, Eva a Adão; “na paixão de Cristo, uma esposa provocou-o à salvação”, isto é, Cláudia a Pilatos (Serm. CXXI, de Temp.). Autores como Rábano Mauro, contudo, interpretam o sonho como uma tentação do diabo, para que Cristo fosse liberto e, assim, não resgatasse o homem do pecado: “Sabendo o diabo que, por Cristo, perderia seus despojos, pretendeu libertá-lo por uma mulher”, assim como, no princípio, levara por outra mulher o homem a tornar-se escravo (cf. Pe. Cornélio a Lapide, SJ, Commentarii, vol. 8, p. 521B. Nota da Equipe CNP).
[2] De acordo com Étienne Gilson, o título Padre da Igreja, em sentido amplo, “designa todos os escritores eclesiásticos antigos, mortos na fé cristã e na comunhão da Igreja; em sentido estrito, um Padre (ou Pai) da Igreja deve apresentar quatro características: ortodoxia doutrinal, santidade de vida, aprovação da Igreja, relativa antiguidade (até fins do século III, aproximadamente)”. Segundo essa acepção, Orígenes não poderia ser chamado Padre da Igreja nem em sentido amplo (defendeu, com efeito, doutrinas condenadas pelo Magistério) nem em sentido estrito (não brilhou pela santidade de vida nem conta com a aprovação da Igreja), mas apenas escritor eclesiástico, isto é, alguém “cuja autoridade doutrinal é muito menor e cuja ortodoxia pode, inclusive, não ser irretocável”, embora seja uma testemunha antiga e importante da tradição (A Filosofia na Idade Média. Trad. port. de Eduardo Brandão. 3.ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. XXI) (Nota da Equipe CNP).
[3] É através da pena do historiador grego Plutarco (46-120 d.C.), em De defectu oraculorum, que temos notícia do fim de Pã, o único deus grego a morrer. Durante o reinado do imperador Tibério César (14-37 d.C.), um navio teria passado pela ilha de Paxos e de lá se ouviu uma voz que gritava, da margem, a um marinheiro de nome Tâmus: “Quando chegares a Palodes, anuncia que o grande Pã está morto!” Transmitida a notícia, tudo em torno ressoou como um lamento de dor dos animais, árvores e rochas. Esse relato foi interpretado por G. K. Chesterton como um marco do fim da mitologia e do início da teologia (Nota da Equipe CNP).
__________Stephanie Mann. Tradução: Equipe Christo Nihil Praeponere
(Fonte: in blog Padre Paulo Ricardo, postado em 22/03/2021)