O ANO LITÚRGICO
CICLO DE PÁSCOA (SETUAGÉSIMA — QUARESMA — PAIXÃO)
PARTE II
Continuação do post anterior …*
Tempo da Paixão.
É tomada em Jeremias a lectio continua das Sagradas Escrituras durante as duas semanas do Tempo da Paixão. Poe-nos a Igreja, ainda aqui, a escuta do Espirito Santo “qui locutus est per prophetas” (Credo).
Existem, alias, impressionantes semelhanças entre a paixão do
Salvador e os sofrimentos de Jeremias. Assim, nas perseguições de que foi vitima o profeta, e que ele, em termos emocionantes, nos descreve, a Igreja vê a prefiguração e predição do muito do que os perseguidores do Messias o fizeram sofrer:
“Eu era como um manso cordeiro que e levado para ser vitima… Diziam eles contra mim: Exterminemo-lo da terra dos vivos” (Epístola de Terça-feira Santa — Jer. 11,19).
Ainda com maior precisão profetizou Isaías diferentes circunstâncias da paixão do Salvador. Cita-o a Igreja durante a Semana Santa (Por ex., 2ª. e 5ª. antífonas de Laudes de Quinta-feira Santa). Não nos compete estudá-lo no presente volume.
O evangelho da segunda-feira da Paixão relata uma tentativa de aprisionamento de Jesus, quando em Jerusalém para a festa dos Tabernáculos.
“Os príncipes dos sacerdotes e os fariseus enviaram agentes para o prenderem. Nesta ocasião disse Jesus: Ainda por um pouco estou convosco e depois irei para Aquele que me enviou” (Jo. 7, 32-33).
Foi malograda essa tentativa dos chefes religiosos judeus, desejosos de se desembaraçarem de Jesus. Ainda não chegara a “Sua Hora”, a hora da paixão e da glorificação, isto é, de sua volta ao Pai.
A festa dos Tabernáculos lembrava aos Judeus sua permanência no deserto. Nela se procedia a um rito de aspersão de água retirada da fonte de Siloé. Essa água era depois derramada aos pés do altar dos holocaustos em lembrança daquela com que Javé saciara miraculosamente seu povo no deserto de Faran.
São numerosos os textos dos profetas representando Deus como fonte a jorrar água viva. Isaías diz, por exemplo:
“Não sofrem sede os que ele conduziu ao deserto; fez jorrar para eles água do rochedo” (Is. 48, 21).
Prefigurava esse rochedo ao Messias, escrevera S. Paulo:
“Bebiam todos de uma rocha espiritual… Esta rocha era o Cristo” (Epístola, dom. da Setuagésima — 1 Cor. 10, 4).
Quanto a água que jorra, é símbolo da vida espiritual de que Jesus é a fonte a derramar nas almas as gracas do Espirito Santo. A água viva e particularmente o emblema desse Espírito vivificante. Com efeito, relata-nos S. João que, no dia mais solene da festa dos Tabernáculos,
“Jesus, em pé, dizia em alta voz: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. O que crê em mim, como diz a Escritura, do seu seio correrão rios de água viva. Ele dizia isio referindo-se ao Espírito que haviam de receber os que cressem nele” (Evang. da segunda-feira da Paixão — Jo. 7, 37-39).
Assim, seis meses antes da paixão, anuncia Cristo sua missão de dispensador do Espirito Santo, missão a ser realizada quando ele voltar para junto do Pai.
Mostra-nos o evangelho da sexta-feira da semana da Paixão os príncipes dos sacerdotes e os fariseus reunidos em conselho contra Jesus, ao saberem da ressurreição de Lazaro (Jo. 11.46). E disseram:
“Que faremos nós? Este homem faz muitos milagres. Se o deixamos continuar, crerão todos nele, e virão os Romanos e destruirão nossa cidade e nossa nação. Mas um deles, Caifás, que era sumo sacerdote naquele ano, disse-lhes: ‘É de vosso interesse que morra um só homem, de preferência a ver perecer toda a nação’. Não falou isto por si mesmo, mas, sendo o sumo sacerdote daquele ano, profetizou que Jesus devia morrer por todo o povo, e não só por todo o povo, mas também para reconduzir a unidade os filhos de Deus dispersos. A partir desse dia, resolveram, pois, matá-lo” (Jo. 11.47-53).
A expressão “profetizou”, empregada por S. João, supõe a intervenção do Espírito de Deus. Eis como no-lo explica Sto. Agostinho:
“Vemos aqui que, mesmo os homens maus, podem, pelo espírito de profecia, anunciar coisas futuras. Entretanto o Evangelista atribui este último fato a um mistério todo divino; pois nota que ‘ele era Pontífice’, isto é, sumo sacerdote” (3ª. lição, sexta-feira da Paixão).
No domingo de Ramos, faz-nos a Igreja aclamar a Cristo Rei, evocando sua entrada triunfal em Jerusalém.
“Com flores e palmas, acorre a turba ao Redentor e presta digna homenagem ao vencedor em seu triunfo” (1ª. antífona da procissão). “Ave, Rei nosso, Filho de Davi e Redentor do mundo, que os profetas anunciaram vir como Salvador da casa de Israel” (7ª. ant. da procissão).
Sempre se conformou Jesus aos oráculos proféticos que lhe concerniam, dos quais foi o Espírito Santo o inspirador. No evangelho da bênção dos ramos, cita S. Mateus um desses oráculos:
“Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que tinha sido anunciado pelo profeta (Zacarias): Dizei a filha de Sião: Eis que teu rei vem a ti cheio de mansidão, montado sobre uma jumenta e sobre um jumentinho, filho da que leva o jugo” (Zac. 9, 9 — Mt. 21, 4-5).
S. João nos diz no evangelho do sábado da Paixão:
“No momento os discípulos não compreenderam isto; mas quando Jesus foi glorificado, lembraram-se de que estas coisas estavam escritas a respeito dele, e que de fato se realizaram” (Jo. 12, 16).
Foi, portanto, quando o divino Ressuscitado lhes deu a inteligência das Escrituras e lhes enviou o Espírito Santo, que os Apóstolos compreenderam todo o alcance dessa profecia.
No mesmo evangelho acima mencionado, fala-nos S. João que Jesus anunciou sua morte próxima, a vitória definitiva que ele alcançaria sobre o demônio e a salvação que asseguraria ao mundo inteiro por sua exaltação na cruz.
“Foi para esta hora que vim… Agora o príncipe deste mundo será lançado fora. Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim”. “Dizia isto querendo dar a entender de que morte haveria de morrer” (Jo. 12, 27 e 31-32).
Tríduo pascal: Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado Santos
“Atrairei todos a mim”. Esse alcance universal da redenção anunciado por Jesus e objeto das solenes Orações da Sexta-feira Santa.
Destacamos a que se refere a ação que o Espírito de Deus exerce em toda a Igreja.
“Onipotente e eterno Deus, cujo Espírito santifica e rege todo o corpo da Igreja, ouvi a prece que vos fazemos pelos cristãos de todas as condições, a fim de que, pelo socorro de vossa graça, todos eles vos possam servir fielmente.”
Memorial da Ceia
A Igreja celebra na Quinta-feira Santa o “Memorial da Ceia”.
Muito particularmente comemora a instituição do sacrifício eucarístico e do sacerdócio católico, feitos por Jesus. Diz o evangelho desse dia:
“Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, deu-lhes de seu amor um testemunho supremo” (Jo. 13, 1).
Com toda caridade e humildade lavou-lhes os pés. Depois, tendo comido com eles o cordeiro pascal, tomou pão e vinho e os transformou em seu corpo e em seu sangue. Sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, assim preludiava Jesus, por um rito não sangrento, a sangrenta oblação que, para a salvação de todos os homens, iria Ele realizar no dia seguinte sobre a cruz.
“Ofereceu a Deus seu Pai, diz o Concílio de Trento, seu corpo e seu sangue sob as espécies de pão e de vinho; sob estes mesmos símbolos os distribuiu aos Apóstolos que estabeleceu então como sacerdotes do Novo Testamento e deu-lhes, a eles assim como a seus sucessores no sacerdócio, a ordem de oferecê-los, por estas palavras: ‘Fazei isto em memoria de mim’” (Ss. XXII, cap. 1).
E, considerando a missa como um banquete sacrificial em que comungamos a Vítima divina do Gólgota, presente sobre a mesa do Senhor (1Cor. 10, 21.), afirma S. Paulo:
“Todas as vezes que corneis este pão e bebeis deste cálice, anunciais a morte do Senhor, ate que ele venha” (Epístola de Quinta-feira Santa — 1Cor. 11, 26).
A oblação do sangue da nova aliança, sempre renovada no decurso dos séculos sobre os altares do mundo inteiro, assegura a todos os cristãos as gracas de que o Calvário e a fonte e que são derramadas em profusão nas almas pelo Espírito Santo.
No discurso depois da Ceia, Jesus revelou, com efeito, a plenitude da ação que esse Espírito de verdade e de amor iria exercer na Igreja e, por ela, no mundo. Adiante voltaremos a tratar desse ponto: o referido discurso e objeto dos evangelhos entre Páscoa e Pentecostes.
Prisão e condenação de Jesus
Nos evangelhos da Paixão notamos algumas palavras de Jesus que mostram seu cuidado em se conformar em tudo a vontade do Pai, revelada pelo Espírito Santo aos profetas e consignada nos Livros Santos, dos quais diz S. Paulo:
“Toda a Escritura é inspirada por Deus” ( 2Tim. 3, 16)
Quando, conduzidos por Judas, a corte e os guardas do Templo vieram prender Jesus em Getsêmani, Simão Pedro com uma espada feriu a Malco, servo do sumo pontífice. O Mestre, porem, lhe disse:
“Mete a tua espada em seu lugar… Pensas que eu não poderia rogar ao Pai, que me enviaria, logo, mais de doze legiões de anjos? Como, pois, se cumpririam as Escrituras segundo as quais assim deve suceder?… Tudo isto aconteceu para que se cumprissem os escritos dos profetas” (Dom. de Ramos — Mt. 26, 52-56).
Pouco depois, ao comparecer Jesus diante do Sinédrio, o sumo sacerdote o submeteu a um inquérito. Na falta de argumentos, perguntou-lhe afinal:
“Es tu o Messias, o Filho de Deus? — Eu o sou, respondeu Jesus, e vereis o Filho do Homem sentado a direita do poder de Deus e vindo entre as nuvens do céu” (Mc. 14, 61-62).
A expressão “sentar-se a direita de Deus” e alusão ao salmo de
Davi: Dixit Dominus Domino meo: Sede a dexlris meis, que e uma profecia messiânica (Sl. 109, 1) E essa vinda sobre as nuvens lembra a visão do profeta Daniel que percebeu um como que Filho do homem, vindo sobre as nuvens do céu e recebendo do Ancião dos dias (Deus) império e realeza sobre todas as nações (Dan. 7, 13-14).
Declarar-se Filho de Deus diante do Sinédrio e assim publicamente arrogar-se uma realeza divina era para Jesus assinar a própria condenação.
Vociferaram os chefes religiosos judeus ante a blasfêmia e declararam: “é réu de morte” (Mt. 26, 66). Mas não tendo eles direito de executar esta sentença, recorreram a Pilatos, que governava a Judeia em nome dos Romanos.
Diante da autoridade civil, acusaram Jesus de um crime de caráter politico:
“Achamos este homem… dizendo-se o Messias-Rei” (Lc. 23, 2).
Interrogado pelo governador a esse respeito, respondeu Jesus:
“Meu reino não e deste mundo… Meu reino não e daqui” — “Então, tu és rei?” disse-lhe Pilatos. — “Tu o dizes, eu sou rei”, respondeu Jesus. “Para isto nasci e para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que e da verdade escuta minha voz” ( Jo. 18, 36-37).
Esse reino espiritual e aquele que o “Espirito de verdade”, prometido por Cristo no discurso após a Ceia, estendera ao mundo inteiro.
Trata-se de uma realeza de ordem inteiramente diversa da ordem politica, na qual estavam acusando Jesus. A causa não era, portanto, da competência do governador romano, que afirmou:
“Por mim não acho crime nesse homem.”
Os Judeus exclamaram então:
“Nós temos uma Lei, e segundo essa Lei deve morrer, porque se diz Filho de Deus” (Jo. 19, 6-7).
Estamos no próprio amago do drama da redenção. E como Filho de Deus e para estabelecer sua realeza sobre as almas por direito de conquista que Jesus se entrega voluntariamente a morte. A Pilatos que ainda o interroga, nada diz que lhe possa valer a vida. E finalmente, avolumando-se os clamores a exigirem que o crucificassem, declarou o governador:
“Sou inocente do sangue deste justo, vede bem!” (Mt. 27, 24). “E lhes entregou Jesus para fazerem dele o que pretendiam” (Lc. 23, 25).
“Tomaram pois a Jesus e o levaram. E ele, carregando a cruz, dirigiu-se para o Gólgota, onde o crucificaram” (Jo. 19,17-18).
Morte de Jesus sobre a cruz
Cerca da hora sexta (meio-dia) o divino Crucificado entrou em agonia. Foi ela dolorosíssima e durou três longas horas. A hora nona (três horas da tarde) soltou Jesus um grande brado:
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt. 27, 46).
E por esta frase que começa o salmo 21, em que Davi relembra
as perseguições passadas e exprime a esperança de um próximo triunfo.
Fazendo suas sobre a cruz essas palavras inspiradas pelo Espírito Santo, Jesus mostrava terem elas caráter profético e encontrarem nele perfeito cumprimento. Provam-no cabalmente outros versículos do mesmo salmo 21, que tiveram no momento plena realização.
“Os transeuntes injuriavam-no” (Mt. 27, 39; Sl. 21, 8).
“Dividiram entre si as suas vestes, lançando sortes” (Mt. 27, 35; SI. 21, 19).
“Os príncipes dos sacerdotes zombavam dele com os escribas anciãos: Salvou os outros, diziam, e não pode salvar a si mesmo. Ele é rei de Israel!… Confiou em Deus; que Deus o liberte agora, se o ama” (Mt. 27, 41-42; Sl. 21, 8-9).
Entre os sofrimentos físicos que torturam os crucificados, há um particularmente atroz: uma sede ardente. Foi o único de que Jesus se queixou, e fê-lo para que totalmente se cumprissem todas as profecias, feitas sob a inspiração do Espírito Santo, a seu respeito.
“Sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir a Escritura, disse: ‘Tenho sede’. Havia lá um vaso cheio de vinagre. Embeberam no vinagre uma esponja, prenderam-na a ponta de uma vara de hissopo e chegaram-lhe a boca. Tendo tomado o vinagre, disse Jesus: ‘Tudo esta consumado!’ E inclinando a cabeça, entregou o espirito” (Jo. 19, 28-30; Sl. 21, 16; Sl. 68-22).
Com voz forte, exclamou: “’Pai, em tuas mãos entrego o meu espirito’. E, dizendo isto, expirou” (Lc. 23, 46; Sl. 30, 6).
Ainda aqui, foi no livro dos Salmos, cujo principal autor é o Espírito de Deus, que o divino Salvador tomou esse versículo. Foi, portanto, sob a influencia do Espírito divino que ele findou sua vida terrestre, ao entregar ao Pai seu espirito — sopro saído da boca de Deus.
S. Paulo, na epístola do domingo da Paixão e na sétima lição do sábado Santo, fala do sacrifício que Jesus ofereceu derramando seu sangue para nossa salvação. Uma das razoes pela qual esta oblação supera todos os sacrifícios da Antiga Lei e que Jesus, sumo sacerdote da Lei Nova, realizou-a sob a moção do Espírito Santo que inspirava todos os seus atos.
“Se o sangue de cabritos e de touros… santifica dando pureza de corpo, quanto mais o sangue de Jesus Cristo — que, pelo eterno Espírito (pelo Espírito Santo, diz a Vulgata) se ofereceu a Deus como vítima imaculada — purificara nossa consciência das obras mortas” (Heb. 9, 13-14).
No ordinário da missa, a segunda oração antes da santa comunhão exprime-se no mesmo sentido. Começa pelas seguintes palavras:
“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, que por vossa morte destes a vida ao mundo conforme a vontade do Pai e em cooperação com o Espírito Santo (cooperante Spiritu Sancto) etc.”
Nossa participação na paixão de Jesus
Por outro lado, se foi sob a influência do Espírito Santo que Jesus consumou nossa Redenção, e também guiada pelo mesmo Espírito que a Igreja comemora e celebra esse mistério para associar a ele os fieis, exortando-os a maior generosidade durante toda a Quaresma.
Falando do jejum que nos mortifica o corpo, pede que nossa alma “se abstenha do pecado”, “a culpa jejunet” (Sábado, 3ª. sem. da Quaresma).
A esse respeito, diz S. Leão:
“É com razão e por inspiração do Espírito Santo que os Apóstolos ordenaram para estes dias jejuns mais austeros, a fim de que, participando, também nos, da cruz de Cristo, façamos algo que nos una ao que ele fez por nos, como diz o Apostolo: “Se sofrermos, com ele, com ele seremos glorificados” (4ª. lição, dom. da Paixão — Rom. 8, 17).
* Dividimos em duas partes a postagem, a fim de facilitar a leitura e compreensão.
(Fonte: livro O Espírito de Deus na Santa Liturgia, Dom Gaspar Lefèbvre, OSB, Livraria Editora Flamboyant, 1962, Tradução das Religiosas da Virgem de Petrópolis, Cap. III, pp. 52-61 – Texto revisto e atualizado)