O QUE É UM MOSTEIRO BENEDITINO?
Continuação do post anterior….
Por Dom Emmanuel-Marie André († 1903)
CAPÍTULO VI
O Mosteiro
O mosteiro recebeu de São Bento um nome maravilhosamente belo: é a casa de Deus, Domus Dei; nossos pais amavam este nome e, de bom grado, diziam: a casa de Deus, como hoje ainda se diz Hôtel-Dieu.
A casa de Deus está inteiramente submetida ao governo de Deus; Ele a rege pela Sua lei, pelos Seus mandamentos, por Seus conselhos, por Sua graça, por Seu amor. A casa de Deus combate pelo seu rei, e este é Nosso Senhor Jesus Cristo.
A casa de Deus é a morada da paz; imagem do céu, o mosteiro tende a libertar-se cada vez mais de tudo o que é terrestre; seus habitantes, êmulos dos santos anjos, devem viver numa tranquilidade tal que eles estejam ao abrigo de toda a perturbação e de toda a tristeza. Gosta-se de ouvir São Bento dizer estas encantadoras palavras: Que ninguém seja perturbado ou entristecido na casa de Deus. Nemo perturbetur neque contristetur in domo Dei.
Não se diria que o santo revelou nesta breve máxima toda a doçura da sua alma, toda a ternura do seu coração paternal?
A casa de Deus é também uma escola. Desde as primeiras páginas da Regra, São Bento chama o seu mosteiro de escola do serviço do Senhor. O monge está na escola e sempre deve aprender; a ciência por excelência à qual ele se deve aplicar é o serviço do Senhor.
CAPÍTULO VII
O Abade
Sendo o mosteiro a casa de Deus, o abade deve ser considerado como lugar-tenente de Jesus Cristo. São Bento di-lo expressamente: Christi agere vices in monasterio creditur.
Segue-se daí que seu governo deve ser uma imitação do governo de Deus. Escreveu-se outrora um livro sobre esta questão: Qual é o melhor governo, o rigoroso ou o brando? O melhor governo, segundo nós, é aquele que imita mais perfeitamente o de Deus, o qual governa com a autoridade que sabe empregar o melhor possível a doçura, quando esta se requer e o rigor, quando este é exigido. Tal é a autoridade de Deus, tal deve ser o chefe do mosteiro conforme São Bento.
São Bento adverte ter o Abade um encargo difícil, o de governar almas e de adaptar-se aos caracteres de muitos. Difficilem et arduam rem regere animas et multorum servire moribus. Servire! Aí está um dos deveres do abade.
Seu cargo lhe é dado a fim de ajudar os fracos, não para tiranizar os bons: Noverit se infirmarum curam suscepisse animarum, non super sanas tyrannidem.
Deve aplicar-se a ser útil a seus irmãos e não a fazer-se prevalecer: Prodesse magis quam praeesse. Toda a antiguidade repetiu com tanta admiração como complacência esta bela máxima de São Bento.
Como cada um encontra em si o poder de amar e o de odiar, o Abade deve saber regular em si mesmo estas afeições de sua alma. Deve odiar todos os vícios e amar todos os seus irmãos. Oderit vitia, diligat fratres.
Deus quer ser temido, porém, mais ainda quer ser amado: fiel imitador do governo de Deus, o Abade aplicar-se-á, também ele próprio, mais a ser amado do que temido. Studeat plus amari quam timeri.
Depois, como o Abade não passa de um lugar-tenente de Nosso Senhor, ele deverá pensar nas contas muito exatas que Lhe dará de sua alma e de todas as que serão a si confiadas. São Bento não se cansa de repetir esta advertência ao Abade; e a propósito de todos os seus deveres, tanto no temporal como no espiritual, a propósito de todas as suas decisões, ele traz à memória do Abade o julgamento de Deus.
Enfim, exige dele uma virtude indispensável: a discrição. O Abade deve temperar todas as coisas de tal maneira que os fortes desejem fazer mais e que os fracos não venham a desanimar: Sic omnia temperet, ut sit quod fortes cupiant et quod infirmi non refugiant.
CAPÍTULO VIII
Os Irmãos
São Bento, para reconhecer a vocação de seus noviços, tinha quatro sinais que nos ensinou e que se podem dizer infalíveis. Examinava, portanto, se o noviço procurava a Deus com toda a pureza, o que já não é tão comum; em segundo lugar se ele tinha zelo pelo ofício divino; a seguir se era pronto na obediência; por fim se suportava bem uma reprimenda, um opróbrio. Si vere Deum quaerit, si sollicitus est ad opus Dei, ad obedientiam, ad opprobria. Estas curtas palavrinhas valem ao menos todo um livro que se intitularia: Do discernimento dos espíritos.
Comprometido pela profissão religiosa, o discípulo de São Bento não pertence mais a si mesmo; cabe à obediência conduzi-lo em todas as coisas. Seu julgamento está submetido a um julgamento superior, sua vontade a uma vontade mais segura; e com isso um monge deve andar na alegria de ver acima de si o superior que Deus encarregou do cuidado de sua alma: Ambulantes alieno judicio et imperio, Abbatem sibi praeesse desiderant.
Uma das coisas que São Bento proíbe com mais insistência é a murmuração. Em todas as ocasiões e por várias vezes, ele volta sobre isso e exclama para todos: Nada de murmurações!
A casa de Deus tornar-se-ia a imagem do inferno, se a murmuração ali penetrasse. Há pelo menos sete passagens da Regra nas quais as murmurações são proibidas.
Os irmãos devem amar-se uns aos outros até se obedecerem de boa vontade: o amor que devem a seu pai, a seu Abade, tem duas qualidades essenciais: deve ser ao mesmo tempo humilde e sincero: humilde, porque o Abade é a imagem viva de Nosso Senhor; sincero, porque o monge deve ser, em todas as coisas, o homem da verdade: Veritatem ex corde et ore proferre.
É assim que, com algumas prescrições muito breves, mas muito substanciais, São Bento regula ao mesmo tempo o homem interior e todo o regime da casa de Deus. Beati qui habitant in domo tua, Domine!
CAPÍTULO IX
As três colunas do edifício
Querendo edificar a casa de Deus, São Bento lhe dá por base três possantes colunas, as quais descreve desde os primeiros capítulos da santa Regra: a obediência, o silêncio e a humildade.
“A obediência nos separa do mundo e de toda as suas maneiras de agir; ela nos separa ao mesmo tempo de nós mesmos, uma vez que nos subtrai os corpos e as vontades, a fim de submetê-los à sua lei.
O silêncio nos retira as palavras, fecha-nos a boca e, aqui e ali, preserva-nos duma infinidade de males.
Enfim, a humildade tira-nos a vaidade; purificando assim o coração e as intenções; ela acaba a obra de nossa conformidade com a vontade de Deus e nos fixa no caminho de toda a perfeição.
Às almas assim despojadas, só resta Deus”.
A Primeira Coluna
Desde as primeiras palavras da Regra, São Bento, considerando que a desobediência foi o começo da perda do gênero humano, quer que retornemos a Deus pelo trabalho da obediência.
O soldado de Cristo, como ele chama ao seu discípulo, deve primeiramente despojar-se de suas próprias vontades depois revestir-se com as armas da obediência. Elas são poderosas, são belas. Obedientiae fortissima atque praeclara arma.
“Os mundanos, dizia Bossuet, correm para a escravidão por meio da liberdade; vós, ao contrário, meus Padres, vós ides para a liberdade por meio da dependência. Que é a liberdade dos filhos de Deus, senão uma dilatação e uma distensão do coração que se desembaraça de todo o finito? Por conseguinte, cortai, suprimi. Nossa vontade é finita e, na medida em que se fecha em si mesma, ela se limita. Quereis ser livres, desembaraçai-vos; não tenhais mais vontade a não ser a de Deus; assim entrareis no poder do Senhor; e, esquecendo-vos da vossa vontade própria, não vos lembrareis senão da Sua justiça”.
“A obediência, diz ainda Bossuet, é o guia dos costumes, a proteção da humildade, o apoio da perseverança, a vida do espírito e a morte garantida do amor próprio”.
São Bento quer que o seu discípulo obedeça em todas as coisas. “Tudo o que se faz sem permissão do Padre espiritual será atribuído à presunção e à vanglória e não à recompensa. Quod sine permissione Patris spiritualis fit praesumptioni deputabitur et vanae gloriae, non mercedi”.
A obediência deve ser tão preciosa e tão cara ao discípulo de São Bento que ele, desejoso de praticá-la sem cessar, obedece não apenas ao seu superior, mas a todos os seus irmãos. Obedientiae bonum non solum Abbati exhibendum est, sed etiam sibi invicem. Os irmãos devem obedecer-se assim à porfia. Obedientiam sibi certatim impendant.
Todas estas recomendações ainda não bastam a São Bento. Ele quer que a obediência tenha qualidades tais que seja agradável a Deus e suave ao que obedece como ao que manda. Acceptabilis Deo et dulcis hominibus.
Ela será tal se for praticada sem medo, sem demora, sem moleza, sem murmuração, sem réplica, mas de boa vontade. Non trepide, non tarde, non tepide, aut cum murmure, vel cum responso nolentis… et cum bono animo. Pois, acrescenta São Bento, segundo o Apóstolo: Quem dá com bom coração é amado por Deus.
Após todas estas recomendações, estaria São Bento satisfeito? Não. Resta-lhe ainda dizer até onde se deve estender a obediência. Ora, conforme o santo, ela se estende até o impossível. Eis as próprias palavras de São Bento: “Se se mandam a um irmão coisas duras e impossíveis, que receba a ordem do superior com toda a doçura e obediência. Se ele vê que o fardo excede completamente as suas forças, exponha ao superior com paciência e no momento oportuno as razões de sua impossibilidade, mas isto sem mostras de soberba, resistência ou contradição. Se, depois de ter assim apresentado suas razões, o superior mantiver a ordem dada, saiba o súdito que é para seu bem, e, por amor, confiado na ajuda de Deus, obedeça. Ex charitate, confidens de adjutorio Dei, obediat”.
A história monástica está repleta de exemplos desta obediência perfeita que, multiplicando as forças do monge, o faz operar realmente o impossível. Escutemos ainda uma vez a voz de Bossuet: “Vós tendes, meus Padres, um exemplo doméstico da virtude da obediência. Tendo o jovem Plácido caído num lago, quando daí tirava água, estava prestes a se afogar, quando São Bento ordenou a São Mauro, seu fiel discípulo, que corresse prontamente para retirá-lo. Fiado na palavra de seu superior, Mauro parte sem hesitar, sem se deter nas dificuldades da empresa; e cheio de confiança na ordem recebida, caminha sobre as águas com tanta firmeza como sobre a terra e retira Plácido do sorvedouro onde ele ia ser abismado. A quem atribuirei um tão grande milagre: à força da obediência ou à da ordem? Grande questão, diz São Gregório, entre São Bento e São Mauro. Digamos porém para decidir, que a obediência dá graça para cumprir o efeito da ordem; e que esta confere graça para dar eficácia à obediência”.
São Bento, um dia, mandou o impossível a um corvo. A história é interessante. Ei-la: um inimigo do santo, querendo dar-lhe a morte, enviou-lhe, a modo de esmola, um pão envenenado. São Bento agradeceu pela esmola e logo percebeu o veneno. Na hora da refeição, estando à mesa, um corvo, que tinha o costume de vir dum bosque vizinho receber pão da mão do santo, aproximou-se como sempre. São Bento atirou-lhe o pão envenenado e lhe disse: Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, leva este pão e joga-o onde ninguém o possa encontrar. O corvo então abre o bico desdobra as asas e se põe a voltear em torno do pão, crocitando fortemente; tudo isto para dizer que ele, sem dúvida, queria obedecer mas não podia fazê-lo. O homem de Deus, insistindo em sua ordem, diz: Leva-o, leva-o sem medo e vai lançá-lo onde ninguém o possa achar. O corvo tomou enfim o pão e, levando-o, partiu. Três horas depois ele voltou sem o pão envenenado, que lançara fora, e recebeu da mão do homem de Deus o pedaço de pão habitual.
A Segunda Coluna
A segunda coluna do edifício é o silêncio. À primeira vista parece bastante estranho que surja uma instituição para disciplinar os homens ensinando-os a se calarem. Naturalmente não se saberia chegar a tanto e, todavia, a graça que criou as instituições monásticas produziu nas almas um tal recolhimento em Deus, que daí resultou sem custo o silêncio. O homem que fala a Deus, o homem que, interiormente, escuta Deus falar-lhe, não tem absolutamente dificuldade em guardar o silêncio. Se parece que ele perde alguma coisa não conversando de modo nenhum com os seus semelhantes, ganha infinitamente mais conversando com Deus. Se pela palavra entramos em comunicação com os homens, pela oração nós nos relacionamos com Deus; e o que se ganha na companhia de Deus é completamente superior ao que nos poderia dar a companhia dos homens.
O silêncio se torna então um rico tesouro, e é o pensamento de São Bento quando escreve a expressão gravitas silentii. Se traduzirdes: gravidade, importância, riqueza do silêncio, tereis expresso o pensamento do santo legislador.
Depois disto, não se terá dificuldade em compreender esta sentença da Regra: Os monges devem em todo o tempo aplicar-se a guardar o silêncio, mas sobretudo durante a noite: Omni tempore silentio debent studere monachi, maxime tamen nocturnis horis.
Silentio studere, aplicar-se a nada dizer, eis aí um tipo de aplicação inteiramente novo. Os antigos monges haviam feito nisto tais progressos que tinham inventado sinais por cujo meio comunicavam os seus pensamentos quando era necessário, sabendo que ganhariam sempre e cada vez mais em não abrir absolutamente a boca. É a doutrina do Espírito Santo que, pela boca do apóstolo S. Tiago Menor, nos diz: “Cometemos todos muitas faltas, mas quem não as comete em palavras, é um homem perfeito”.
A Terceira Coluna
Humilitas entre os Romanos queria dizer baixeza; humilis domus para Horácio significava uma casa pobre. A Igreja, apoderando-se da língua latina enriqueceu-a singularmente com uma quantidade de expressões, e entre outras a palavra humilitas, com a qual ela designou esta grande e bela virtude que, despojando-nos do orgulho, nos torna tão caros a Deus: a humildade.
É a terceira coluna do edifício beneditino. A quem perguntasse a São Bento qual das três colunas ele julgava a mais necessária, o incomparável patriarca teria respondido com Santo Agostinho: a humildade. E a quem perguntasse uma segunda e terceira vez qual a mais necessária, como Santo Agostinho, ele teria respondido sempre: a humildade.
É manifesto que São Bento atribuía a esta virtude um valor inestimável. Ele a ensina com uma complacência bem acentuada; faz dela, por assim dizer, um tratado todo especial, o capítulo VII da Regra.
A primeira das obras de São Bernardo é precisamente o comentário deste capítulo VII da Regra de São Bento. É neste tratado que o ilustre abade de Claraval deu, da humildade, a definição que todos os mestres adotaram por unanimidade: “A humildade é a virtude que nos faz desprezar-nos em conseqüência de um conhecimento sumamente verdadeiro de nós mesmos”.
São Bento enumera doze graus de humildade. Eis aqui seu resumo:
1. Ter continuamente diante dos olhos o temor de Deus e, por conseguinte, manter-se prevenido contra todos os pecados e, notadamente, contra a vontade própria;
2. Renunciar a seus próprios desejos, em consequência da renúncia à própria vontade;
3. Submeter-se com toda a obediência a seu superior por amor de Deus;
4. Aceitar em paz as ordens difíceis, até os maus tratos e as injúrias;
5. Descobrir simplesmente ao superior os pensamentos mesmo maus que vêm à mente;
6. Contentar-se com o que há de mais vil e abjeto;
7. Considerar-se, no fundo do coração, como o último de todos;
8. Seguir simplesmente a regra comum e fugir de toda a singularidade;
9. Guardar o silêncio até que seja interrogado;
10. Não ser absolutamente pronto para rir;
11. Falar suavemente, gravemente, com poucas palavras bem razoáveis;
12. Trazer a humildade no coração e em todo o seu exterior, baixando os olhos, como um criminoso que se considera a ponto de ser chamado ao temível tribunal de Deus.
Por aí se vê que São Bento, por assim dizer, faz decorrer da humildade toda a perfeição monástica.
Continua….
(Fonte: Mosteiro de Santa Cruz – mosteirodasantacruz.org.br – destaques acrescidos)