O QUE É UM MOSTEIRO BENEDITINO?
Por Dom Emmanuel-Marie André († 1903)
As poucas páginas que seguem foram publicadas pela primeira vez no Boletim da Obra de Nossa Senhora da Santa Esperança. Tínhamos anunciado a fundação dos Beneditinos e das Beneditinas de Nossa Senhora da Santa Esperança, e as Máximas de São Bento vinham, por assim dizer, responder à pergunta: O que é então um mosteiro beneditino?
Desejamos que estas páginas levem a resposta a toda parte em que puder esclarecer um espírito, alegrar uma alma, ajudar talvez uma vocação. Quantas almas sofrem no mundo por não terem encontrado o seu caminho e que renderiam graças a Deus pela sua felicidade se uma mão caridosa lhes mostrasse a porta de um mosteiro beneditino!
CAPÍTULO 1 – São Bento e sua obra na igreja
CAPÍTULO 2 – O segredo do poder de São Bento
CAPÍTULO 3 – A presença de Deus
CAPÍTULO 4 – O amor de Nosso Senhor Jesus Cristo
CAPÍTULO 5 – A graça de Deus
CAPÍTULO 6 – O Mosteiro
CAPÍTULO 7 – O Abade
CAPÍTULO 8 – Os Irmãos
CAPÍTULO 9 – As três colunas do edifício
CAPÍTULO 10 – A Oração
CAPÍTULO 11 – O Ofício Divino
CAPÍTULO 12 – A liberdade de espírito
CAPÍTULO 13 – Um testemunho
CAPÍTULO 14 – A luz em todas as coisas
CAPÍTULO 15 – A Glória de Deus em todas as coisas
CAPÍTULO I
AS MÁXIMAS DE SÃO BENTO
São Bento e a sua obra na Igreja
Aprouve muitas vezes a Deus, que falou a Moisés no monte Sinai, falar a seus santos no cume das montanhas, longe do mundo, perto do céu. Monte Cassino é um desses lugares abençoados; lá se ergue, como sobre uma base de granito, a grande imagem de São Bento. A mão de Deus que o tinha arrebatado do mundo, conduziu-o à solidão, e o moldou para ser o pai da maior família monástica que já houve na Igreja.
Ele começou, diz Bossuet, por onde os outros acabam, ou seja, pela perfeição. Sua primeira vitória sobre o mundo foi completa, decisiva: a vitória que ele alcançou pouco depois sobre si mesmo, triunfando sobre os atrativos da voluptuosidade, não foi menos completa nem menos decisiva. Em seguida correu com um passo livre e seguro no caminho de Deus, e, como nota o mais ilustre dos seus discípulos, São Gregório Magno, tendo-se tornado eleito de Deus, tornou-se doutor das almas. Electi, doctores animarum fiunt.
Era admirável ver São Bento, tão jovem ainda, cercado de discípulos, ensinando-lhes o caminho da perfeição monástica. A humildade do pai foi a medida da multiplicação dos filhos: “De modo que para fazer o seu panegírico em poucas palavras e resumir seus louvores, seria preciso apenas destacar que Deus o julgou bastante digno de ser a cabeça desse grande corpo, dessa ordem tão célebre, tão santa, tão ilustre, tão útil e tão gloriosa para a Igreja; seria preciso apenas dizer que ele teve em grau eminente todas as virtudes, as perfeições, os méritos, as coroas, as auréolas dessa multidão inumerável de santos patriarcas, profetas, homens apostólicos, mártires, pontífices, confessores e virgens que pertenceram à sua ordem e nela permanecerão até a consumação dos séculos, aos quais ele comunicou e comunica continuamente tanto a santidade que eles tiveram na terra como a glória e felicidade que possuem no céu… Quanta glória deram a Deus, quantos sacrifícios Lhe ofereceram, quantas almas Lhe ganharam, quantos infiéis converteram, quantos fiéis santificaram, quantos povos instruíram, quantas paróquias governaram, quantos sacramentos administraram, quantos ofícios divinos cantaram, quantos serviços prestaram à Igreja, quantas orações vocais, quantas orações mentais, quantos jejuns, quantas vigílias, quantas esmolas, quantas penitências, quantas obras de caridade fizeram, quantos atos de virtude praticaram. Depois de Deus, é São Bento o autor de todas essas coisas, ele as desejou ardentemente, pediu-as nas suas orações, obteve-as pelas suas preces, mereceu-as pelas suas boas obras e previu-as por seu espírito profético: portanto tem delas a alegria, a recompensa e a glória acidental, como frutos de seus trabalhos, colheitas de suas sementes, efeitos de suas influências”.
Mostrar São Bento em todas as suas grandezas seria uma tarefa muito além de nossas forças: entretanto, querendo prestar-lhe ao menos uma pequena homenagem, nós nos determinamos a publicar algumas de suas máximas.
Os antigos concílios testemunham que São Bento foi assistido pelo mesmo espírito de Deus que ditou os cânones dos concílios. São Gregório Magno, esse experimentado apreciador do mérito, diz que ele foi repleto do espírito de todos os justos: que era uma lâmpada colocada sobre o candelabro para iluminar toda a casa de Deus.
Será bom para nós desfrutar dessa luz e entrar assim no íntimo do pensamento dum santo que penetrou tanto mais profundamente no pensamento de Deus quanto mais humilde era diante de seu Criador. Pois, se é verdade, como ensina São Gregório, que o orgulho é sempre estranho à verdade, não seria menos verdade dizer que a humildade está sempre na posse e no gozo da verdade de Deus.
Ora, São Bento foi humilde: ele o era para com Deus e para com todos. Seus próprios inimigos, os que tentaram envenená-lo, não puderam alterar a sua paz, a sua doçura, a sua invencível humildade. Sempre ele se via sob o olhar de Deus, segundo o testemunho de seu santo biógrafo e, por conseguinte, lia sem cessar no livro da verdade eterna, aprendendo desse modo a desprezar-se a si mesmo e a só fazer caso de Deus.
Foi assim que São Bento atraiu para sua alma essas ondas maravilhosas de luz divina que lhe revelava o fundo dos corações, os pensamentos mais secretos, os acontecimentos que ocorriam longe dele, e mesmo aqueles que não deviam suceder senão após longos anos.
Deus derramava em abundância a sua luz nessa alma vazia de si mesma e faminta só de Deus. Enriquecido com os tesouros da sabedoria do alto, São Bento escreveu a santa Regra. É o nome que ele mesmo lhe dá e que a tradição conservou e consagrou. É nela que São Bento descreveu a si mesmo, pois só ensinou o que fez.
É nela também que estudaremos o seu espírito. Para abarcá-lo na sua plenitude, seria preciso contar, pesar, penetrar todas as palavras da santa Regra; não seríamos capazes de um trabalho tão amplo: vamos nos limitar a colher num campo tão vasto e variado algumas flores cuja cor, odor e perfume possam ser úteis a nossos leitores. Queira Deus que essas flores, ao passarem por nossas mãos, nada percam de sua frescura nativa, de sua graça original, de sua virtude sobrenatural.
CAPÍTULO II
O segredo do poder de São Bento
O que nos surpreende, o que nos maravilha em São Bento, é o poder, a fecundidade, que catorze séculos absolutamente não esgotaram. Se, à vista desses dons tão espantosos, se pergunta qual foi o segredo dum semelhante poder, duma tal fecundidade, encontra-se uma resposta nestas três palavras: a castidade, a humildade, as lágrimas.
São Gregório é admirável, quando, no segundo livro dos seus Diálogos, nos descobre o poder incomparável da castidade de São Bento. “Um dia, o santo teve uma tentação da carne tão violenta como nunca havia experimentado uma semelhante… Quase vencido, ele duvidava se não iria deixar o seu deserto, mas uma graça do alto fez subitamente que voltasse a si mesmo. Notando um lugar cheio de urtigas e de espinhos, despojou-se de suas vestes e lançou-se nu sobre as pontas dos espinhos, nesse braseiro de urtigas; aí se revolveu muito tempo e saiu com o corpo coberto de feridas. Estas tinham curado a chaga de sua alma; por seus esforços, a volúpia tinha-se mudado em dor. Por meio desse castigo do fogo, ele extinguiu o fogo impuro; tinha vencido o pecado. Desde esse momento, como ele próprio contava a seus discípulos, a tentação foi subjugada de tal maneira que nunca mais sentiu o assalto da volúpia. Então começaram muitos a deixar o mundo e apressaram-se em colocar-se sob sua conduta. Isento da tentação, livre do pecado, ele se tornou mestre das virtudes: era justo”.
Então, diz São Gregório, para fazer-nos compreender bem o segredo desse poder de atração que admiramos em São Bento: ele tinha vencido a carne, era poderoso no espírito. O Espírito Santo fez escrever estas divinas palavras: “Oh, como é bela a geração dos castos!”. Sim, como é bela a geração de homens castos que, tendo começado em São Bento, durou mais de catorze séculos e, segundo uma promessa divina, durará até o fim dos tempos!
À castidade, São Bento acrescentou a humildade, sua companheira inseparável. Conforme o testemunho de seu santo biógrafo, ele preferia antes sofrer as injúrias do mundo do que receber seus louvores: Plus appetens mala mundi perpeti quam laudes. Nessa tão curta frase, São Gregório nos faz perceber, duma só vez, quão sublime era a humildade de São Bento. Sendo quem era, ele não podia deixar de sofrer da parte do mundo. Ora, não podia sofrer da parte do mundo senão duas coisas: ou males ou louvores; ele teve uns e outros. Para ele a coisa mais insuportável não era o que chamamos males, mas o que se lhe atribuía pelos louvores. Iluminado do alto, percebia o mal oculto debaixo desses louvores do mundo, fruto da vaidade naqueles que os dão e armadilha de vaidade para quem os recebe. O louvor enfraquece a alma, torna a oração difícil, a tentação inevitável. Já que se tem que sofrer alguma coisa da parte do mundo, São Bento preferia sofrer os males do que receber os louvores. Sofrer assim não envaidece absolutamente; sofrer assim nos impele para Deus, o soberano, o único bem. Nessa pura luz da humildade, que é a pura verdade, São Bento estava à vontade sob o olhar de Deus e dEle recebia inestimáveis favores, tanto para si mesmo, como para as almas que gravitavam em torno da sua. “O humilde é amado e consolado por Deus. Deus Se abaixa em direção a ele; dá-lhe a Sua graça e o faz em plenitude e grandeza. Revela-lhe os Seus segredos, convida-o e o atrai docemente a Si. O humilde permanece em Deus e não no mundo: Stat in Deo, non in mundo”.
Elevado em Deus pelas duas asas da castidade e da humildade, São Bento se tornara um instrumento muito apropriado para as obras de Deus. Ele era, como diz São Paulo, um vaso de honra, um instrumento santificado e útil ao Senhor, disposto para toda a boa obra. Casto, ele podia dirigir as almas: humilde, penetrava os mistérios da vontade de Deus, e se prestava tanto melhor para o seu cumprimento, quanto era mais fiel em reservar somente a Deus a glória de todas as coisas. Non nobis, Domine, non nobis!
Não seria de crer que, sendo amigo de Deus, São Bento visse o bem se realizar sob suas mãos, sem ter que beber o cálice do sofrimento. Antes pelo contrário, quanto mais crescia a obra de Deus, tanto mais o incomparável santo tinha lágrimas para derramar. É a lei da providência de Deus. Desde o pecado original, triste fruto do prazer de um instante, o bem não se faz mais neste mundo senão como fruto da dor. Esta verdade não brilha em nenhuma parte com um fulgor mais impressionante do que em Nosso Senhor Jesus Cristo. O grão de trigo, diz o Salvador, não dará fruto nenhum se não morrer, se não for colocado na terra e fecundado pelas chuvas. São Bento também semeou com lágrimas. O sangue de Nosso Senhor caiu sobre a terra, e ele só tem toda a sua fecundidade onde lágrimas que só Deus conhece são derramadas abundantemente. Ele quis, não obstante, que nós conhecêssemos, ao menos em parte, as de São Bento, que chorava freqüentemente. Um padre se havia feito inimigo do santo: Deus o esmagou debaixo das ruínas de sua casa. Anunciou-se o fato a São Bento, não sem certa satisfação. O santo deplorou essa satisfação com tantas lágrimas, quantas derramou pela morte desse desventurado.
Um piedoso senhor, que São Bento honrava com sua amizade, entrou um dia na sua cela e o encontrou chorando com soluços. A vista dum tal amigo não estancou de modo nenhum as lágrimas do santo: Deus lhe havia revelado a futura destruição de seu mosteiro pelos lombardos; à força de lágrimas e de gemidos, obtivera de Deus a vida dos religiosos. Os lombardos, com efeito, saquearam tudo, mas não puderam atentar contra a vida deles.
As orações ordinárias do santo eram acompanhadas de lágrimas; mas, doces como a graça que as fazia brotar, com o amor que as derramava, elas corriam sem barulho. Que espetáculo mais grandioso, mais comovente, mais encantador do que o incomparável santo, tão casto, tão humilde, chorando, sem fazer ruído, diante de Deus.
Continua….
(Fonte: Mosteiro de Santa Cruz – mosteirodasantacruz.org.br – destaques acrescidos)