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PEREGRINO DE CRISTO
PEREGRINO DE CRISTO
Chamados a caminhar ao encontro da vontade de Deus
Em sua autobiografia, Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, refere-se a si mesmo como Peregrino. Segundo seu contemporâneo, padre Jerônimo Nadal, esse termo exprime o sentido de suas peregrinações e o caminho pelo qual o Senhor o conduziu, desde o início de sua conversão. A história do peregrino de Cristo começa em Azpeitia, região basca ao norte da Espanha, onde nasceu em 1491. Filho caçula da família Loyola, de nobreza rural, Iñigo – que depois passaria a se chamar Inácio – sonhava em fazer carreira na corte e ganhar os favores dos reis e poderosos.
Em sua época, conquistar a glória militar era o desejo de muitos jovens. Assim, aos 15 anos, colocou-se a serviço de Juan Velázquez de Cuéllar, espécie de ministro da economia do rei. Aos cuidados dele, Inácio recebeu impecável formação e tornou-se um habilidoso cavaleiro. Até os 26 anos, foi um homem entregue às vaidades do mundo, mas sua vida mudaria completamente em maio de 1521, durante a batalha de Pamplona. No combate, uma bala de canhão acertaria as pernas do nobre basco. Ferido, ele passaria os meses seguintes em recuperação no Castelo de Loyola e, a partir desse momento, iniciaria uma profunda jornada de conversão.
Hoje, quase cinco séculos depois, sua história continua a tocar nossos corações, pois sua vida nos mostra que Deus nunca desiste de nós, pelo contrário, Ele sempre nos convida à conversão. Esse processo, tão presente na vida dos santos e santas, não está distante de nós. O padre Marcos Vinícius Sacramento de Souza, estudante de Teologia Espiritual na Universidade Pontifícia Comillas, em Madrid (Espanha), afirma que a conversão é “a capacidade de nos deixar atrair por Deus, sem resistir à sua Graça, o que acaba mudando radicalmente o sentido da nossa vida”.
Converter-se implica sair de si mesmo, por meio da reconciliação, do arrependimento, da mudança, da renovação em direção à vida segundo o Espírito. “É por isso que falamos de conversão como processo, sempre vivido de modo muito personalizado, no qual cada pessoa vai respondendo, de diferentes modos e graus, à vocação à santidade. Isto é, a uma vida de plena harmonia e comunhão consigo mesmo, com a natureza, com os outros e com Deus”, explica padre Adelson Araújo dos Santos, professor de Teologia Espiritual na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma (Itália).
Nesse contexto, a conversão é um retorno ao projeto de Deus, ou seja, uma reconciliação com o Senhor. Segundo Alex Villas Boas, professor livre docente na área de Teologia do Programa de Pós-Graduação em Teologia, da PUCPR – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, o termo conversão tem duas ideias iniciais: a hebraica teshuvah, que tem a ver com voltar ao caminho, e a grega metanoia, relacionada a uma mudança centro. “Resumindo, a conversão retomada do caminho, é outro sentido horizonte para a vida”, afirma.
A existência de Inácio foi marcada por muitos momentos de conversão, de retomada de caminho.
Por isso, é importante ressaltar que este processo não acontece de uma vez. Padre Adelson explica que trata-se de uma peregrinação ao longo de toda a vida, com diferentes nuances e variadas etapas. “Assim como Inácio, também somos peregrinos, também precisamos pôr-nos a caminho, se queremos chegar a alguma terra prometida, ao verdadeiro princípio e fundamento de nossa existência, ao encontro com o Absoluto e verdadeiro Amor”.
CONVERSÃO NA VIDA COTIDIANA
Contemplar o processo de conversão de Inácio é um convite a repensar a própria vida. A questionar-se, ou seja, como a jornada do peregrino de Cristo me inspira? Por que me sinto tocado pela história de um santo que viveu no século XVI? As respostas são muitas e brotam de diferentes realidades.
Para Josedir Tadeu Gonçalves, 52 anos, em primeiro lugar, Santo Inácio é humano e sua história nos remete à nossa própria história. “Inácio era um leigo como nós, que, por inspiração divina, não somente mudou o curso da sua vida, mas também mudou a vida das pessoas, da Igreja e da História. A sua trajetória nos mostra que é possível a conversão, o testemunho e a ação profética. Um exemplo para homens e mulheres de todos os tempos”, revela.
Membro da CVX (Comunidade de Vida Cristã) e participante das atividades do CCB (Centro Cultural de Brasília), o consultor e empresário conta que, assim como Santo Inácio, o processo de conversão pode ter início em momentos delicados da vida. Ele relembra que, em 2004, sofreu um acidente e precisou ficar afastado do trabalho. Nesse período, entrou em depressão. Entretanto a tristeza o recordou o sofrimento de Cristo e o sentido de seu seguimento. “A dor passou a fazer sentido, o que Deus me indicava como propósito de mudança era a oração, seguir o testemunho dos santos e a conversão. Passei a chamar esse momento de reconversão ao Cristianismo e à Igreja Católica. Fui educado e formado em uma família católica, fiz a Primeira Comunhão, recebi a Crisma e me casei, portanto não poderia buscar o seguimento de Jesus Cristo em outra religião, assim, voltei à casa do Pai”, recorda.
A exemplo de Santo Inácio, Josedir foi capaz de transformar um momento difícil em um encontro com Deus. O professor Alex, da PUCPR, ressalta que, em certas fases da vida, nos damos conta de que algo ainda não está no centro. “Nessas horas, somos convidados a mudar nossa percepção das coisas e deixar que o Evangelho ilumine nossos processos. Sempre teremos percalços: alguns mais rápidos e menos dolorosos de se superar; outros mais demorados e difíceis de enfrentar. A vida de Cristo também foi assim. Nem tudo vem de Deus, mas é importante termos a consciência de que Deus está sempre conosco”, afirma.
Maria de Fátima Buschinelli Marzagão Barbuto, 60 anos, acredita que as dificuldades da vida podem ser oportunidade de crescimento pessoal, especialmente, espiritual. “Para transformar uma dor, como fez Santo Inácio, em um encontro com Deus, basta abrir-se para a graça. Deus está sempre perto e aberto a nós, Ele nos chama, convida e, educadamente, aguarda que O deixemos entrar em nosso coração, em nossa vida”, afirma a terapeuta ocupacional e orientadora/acompanhante de Exercícios Espirituais. Fátima conta que o processo de conversão de Inácio é inspirador e recorda o período de convalescência do santo no castelo da família Loyola. “Naquele momento, ao ler sobre a vida dos santos e de Cristo, ele fez uma releitura de sua própria vida, sob a luz dos que se aproximaram de Deus, sentiram Seu amor. Desse modo, o sofrimento/desapontamento pessoal, o olhar para si e suas dores deu lugar a um olhar mais amplo, a um sair de si de ‘seu próprio querer e interesse’ e, assim, ele encontrou um novo caminho, um novo significado para todas as coisas”, diz.
Por tudo isso, o padre Marcos Vinícius ressalta que o processo de conversão exige um sujeito consciente das suas realidades mais profundas que necessitam serem transformadas e lembra que “precisamos também ter consciência de que o protagonista desse processo é sempre Deus, que, por seu amor misericordioso, nos perdoa”.
CONVERSÃO NA ESPIRITUALIDADE INACIANA
“Nos últimos 12 anos, venho acompanhando pessoas que fazem exercícios espirituais e percebo que são muitas as conversões acontecidas. São etapas concluídas, vidas renovadas, novos propósitos. A espiritualidade inaciana nos ensina a perceber as marcas que Deus deixa em nossa história pessoal, a reconhecer Sua presença e assistência constantes e, o que considero fundamental, ajuda-nos a reconhecer, entre tantos apelos, aquele que realmente é um apelo do Senhor para a nossa vida”, conta Darlene Aparecida Campos Silva, 61 anos.
A professora universitária, que conheceu os Exercícios Espirituais nos retiros oferecidos pela Casa de Retiros Mosteiro de Itaici – Vila Kostka, em Itaici (Indaiatuba/SP), diz que as conversões acontecem durante toda a vida. “Cada etapa da conversão de Santo Inácio pode, certamente, apresentar um modelo para chegarmos à nossa também. Qual parte do meu ser, do meu agir e da minha vida precisa mais da luz do Senhor? Minha conversão traz luz ao lugar onde vivo? Ao aproximar-me do Senhor, estarei recebendo sua luz, com ela também ilumino os que me cercam e isso pode ser multiplicado infinitamente”, ressalta Darlene.
Para Fátima, a experiência pessoal de Deus realmente converte. Ela conta que, até em retiros de final de semana, já testemunhou depoimentos transformadores. “Anos atrás, uma senhora partilhou no grupo que havia ajudado sempre quem na família precisava: primeiro, os pais, depois, irmãos, sobrinhos… e se encontrava com mais de 60 anos e sozinha, sem nunca ter namorado, sem ter amado. Entretanto, ao final do retiro, ela percebeu que não estava só e que havia sim amado e muito – a todos. Sua vida de dedicação aos outros adquiriu novas cores e ela estava radiante, renovada no amor de Deus”, relembra.
Esses depoimentos reforçam a importância do legado de Santo Inácio para o mundo. “A conversão está no coração da espiritualidade Inaciana, pois o próprio Santo Inácio viveu um autêntico processo de conversão humano e espiritual. A Autobiografia e os Exercícios Espirituais são os principais escritos inacianos e nos ajudam a entender e mesmo experimentar a força da conversão que alcançou a história concreta de Iñigo de Loyola”, afirma padre Marcos Vinícius.
Nos Exercícios Espirituais, é necessário sempre deixar Deus nos interpelar e acolher os frutos que confirmam os passos. “Elaboramos nossos projetos de vida com aquilo que conseguimos compreender em um momento da vida. Na medida em que vamos compreendendo melhor, vamos melhor alinhando”, diz Alex.
Segundo padre Adelson, à medida que conhecemos a vida de Inácio, nos damos conta de que ela consistiu em um longo e intenso processo de conversão do seu próprio modo de pensar e de agir. “Inicialmente, parecia-lhe que esta conversão implicava, sobretudo, fatores externos e físicos. Ajudado, porém, pela graça de Deus, Inácio percebeu, pouco a pouco, que a mudança à qual era impelido era muito mais profunda e interior, pois justamente se tratava de mudar o seu coração. É essa mudança interior que, inevitavelmente, o levaria a rever sua relação com os outros, aos quais dedicaria, a partir de então, a sua vida, em tudo amando e servindo, para a maior glória de Deus”, explica o padre jesuíta, acrescentando que “isso tem muito a ensinar em nossos dias ao cristão que busca, sinceramente, uma renovação espiritual e existencial, seja qual for o seu estado de vida (vocação)”.
(Fonte: revista Em Companhia, Edição 46, Ano 5, Julho/2018, pp. 12-17)