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Por que precisamos voltar a ler o Martirológio?
Por que precisamos voltar a ler o Martirológio?
É hora de voltarmos a ler o Martirológio Romano — como Igreja militante reunida em torno dos membros mais ilustres da Igreja triunfante; como irmãos reunidos para folhear e admirar o álbum de sua família.
Em nosso trabalho diário, incessante e incansável, de resgatar as tradições de nossos antepassados e repassá-las às futuras gerações, um livro não pode faltar: o Martirológio Romano.
Apesar do nome, o livro elenca santos e beatos diversos da Santa Igreja, não apenas os que morreram pela fé. Na explicação do prof. Peter Kwasniewski:
O Martirológio Romano começou como uma antiga lista dos nomes dos mártires em seu dies natalis, isto é, nos dias em que eles nasceram para a glória celeste. Foi-se incrementando século após século, à medida que confessores, Doutores, monges, eremitas, frades, virgens, viúvas, reis, rainhas e outros se juntavam à procissão dos mártires através dos séculos. Trata-se de um livro litúrgico, de fato, porque é recitado ou cantado como parte do igualmente antigo ofício de Prima. (O costume é ler a lista de santos do dia seguinte, o que nos prepara mentalmente para as I Vésperas de qualquer grande festa próxima e, em geral, nos faz lembrar com antecedência dos santos de que queiramos fazer memória.) Ele também transmite a fé da Igreja e continua a ser usado pelos religiosos, clérigos e fiéis leigos que aderiram ao usus antiquior do Rito Romano.
A Prima é uma hora canônica do rito antigo, não mais presente nos livros litúrgicos pós-conciliares. Era rezada após as Laudes, e sua composição, bastante rígida, se concentrava em pedir a Deus luzes e forças para os trabalhos do dia que começava. No meio desse ofício, era prescrita a leitura do Martirológio, com a qual se pedia a intercessão dos santos, ao mesmo tempo que um breve elogio de suas vidas era proposto à nossa meditação, como exemplo a ser seguido.
É claro que, com a abolição da hora Prima — a qual, diferentemente de outros itens da reforma litúrgica, foi pedida pelo próprio Concílio Vaticano II —, também se tornou menos comum o uso e a leitura quotidiana do Martirológio. Seu valor, no entanto, não só permanece: à medida que se aprofunda cada vez mais o processo de “protestantização” no seio da Igreja, sua importância hoje talvez seja muito maior do que 60 anos atrás.
Sim, é lastimável dizê-lo, mas os católicos de nossa época infelizmente perderam o contato que os fiéis de outras épocas tinham com os santos — com seus tríduos, novenas e ladainhas. Numa ânsia por nos aproximar dos evangélicos, terminamos acolhendo seus postulados e incorporando-os em nossa vida; é como se, de repente, tivéssemos ficado “com medo” de invocar os santos, celebrar suas memórias e ter imagens deles em casa. Nas próprias igrejas católicas, muitas festas tradicionais em honra dos santos se perderam, e os lugares que a eles se reservavam nos templos foram miseravelmente esvaziados, quando não destruídos por completo.
Esse estado de coisas precisa mudar, a começar pelas nossas próprias casas. Assim como nos relacionamos no dia a dia com os que amamos — nossos cônjuges e filhos, parentes e amigos —, precisamos também criar uma familiaridade com os santos e santas da Igreja. Afinal de contas, se com a graça de Deus viermos a nos salvar, é no convívio com essas almas bem-aventuradas que passaremos a eternidade depois desta vida. Se nossa morada permanente de fato não é neste mundo — como confessamos todos os domingos ao dizer: “Creio… na vida eterna” —, precisamos nos esforçar desde já por conhecer os nossos vizinhos do outro mundo.
Com efeito, como seremos verdadeiros “membros da família de Deus”, “concidadãos dos santos” (Ef 2, 19), se não tivermos intimidade com eles, se não soubermos ao menos quem foram e por que morreram?
É claro que, para conhecer a fundo a vida dos santos, só o Martirológio Romano não será suficiente. O elenco dos santos e beatos aí presente, além de não ser exaustivo, não contém biografias extensas. De todo modo, sua leitura — especialmente se assídua, quando não quotidiana — já é um começo e tanto, que nos ajudará também a orientar nossos dias de acordo com o calendário litúrgico da Igreja.
Sim, porque os católicos, além do ano civil, com seus meses e dias determinados, têm uma marcação transcendente do tempo, orientada pelos mistérios da nossa fé, pelos eventos extraordinários da vida dos santos e por muitas outras devoções que recebemos de nossos antepassados. Assim, janeiro é o tempo do Natal; fevereiro e março, da Quaresma; em abril temos a Paixão do Senhor e sua Páscoa; em maio, Nossa Senhora; em junho, os célebres Santo Antônio, São João Batista e São Pedro; em julho, o Preciosíssimo Sangue de Cristo; em agosto, São Lourenço e as vocações; em setembro, São Miguel Arcanjo; em outubro, os Santos Anjos e o Rosário de Nossa Senhora; em novembro, as almas do Purgatório; em dezembro é Advento; e no ano seguinte começamos tudo de novo…
Como era belo, também nesse sentido, o costume de dar aos filhos os nomes dos santos! As crianças já nasciam protegidas por companheiros celestes, recebendo desde o princípio as bênçãos de seus santos padroeiros! Os dias destes, marcados pelo Martirológio, eram celebrados com festa igual ou até maior que a dos aniversários natalícios! Eis a tradição do aniversário onomástico, que precisamos recuperar.
Outra coisa em que o Martirológio nos ajuda muito, com os relatos tantas vezes perturbadores de como morreram os mártires, é na lembrança destas palavras de Nosso Senhor, das quais nós, seja por ingenuidade, seja pela adesão a certas ideologias, acabamos nos esquecendo: Mundus vos odit, “O mundo vos odeia” (Jo 15, 18). Das primeiras perseguições dos imperadores romanos, passando pelas expansões islâmicas, e pelos morticínios das revoluções “iluministas”, até os campos de concentração modernos, a história é um testemunho vivo desta verdade.
Muitos de nós, em alguns lugares, ficamos “mal acostumados” com a relativa paz de que gozávamos no exercício de nossa religião. Mas as notícias mais recentes — de cidadãos tendo desrespeitadas as suas liberdades mais básicas e fundamentais; de famílias vendo o direito de educar os próprios filhos ameaçado por um Estado cada vez mais ingerente; de regimes totalitários e assassinos perseguindo abertamente os discípulos de Cristo — vêm para nos chacoalhar e lembrar: não fomos feitos para o conforto deste mundo passageiro. Não à toa o príncipe dele é justamente o antagonista de Cristo, o verdadeiro “Príncipe da Paz” de que fala a Escritura (cf. Is 9, 6).
Em suma, precisamos nos preparar para as perseguições que se avizinham. E que modo pode haver melhor de fazer isso, senão olhando para os que nos precederam e venceram antes de nós as mesmíssimas batalhas que estamos prestes a travar?
Por isso, é hora de voltarmos a ler o Martirológio Romano — como Igreja militante reunida em torno dos membros mais ilustres da Igreja triunfante; como irmãos reunidos para folhear e admirar o álbum de sua família. Olhando para a vitória dos mártires, das virgens e dos confessores, ganharemos ânimo no caminho deste “vale de lágrimas”. Descansando para beber água na fonte de sua glória, receberemos graças, forças, para combater nossos inimigos.
Os que tiverem afinidade com a liturgia antiga, podem acrescentar o Martirológio todos os dias em suas orações matinais, recitando a hora Prima. Saibam todos, porém, que essa obra está à disposição de todos, seja em sua forma mais atualizada, disponível aqui, seja em suas edições mais antigas. Nunca o tesouro da vida dos santos esteve tão facilmente acessível!
_________Pe. Paulo Ricardo
(Fonte: canal Padre Paulo Ricardo – Alguns destaques acrescidos)