Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me[1].
“O Domingo das tentações e das vitórias. As ofertas, conselhos e petições que faz o demônio a Cristo para tentá-lo. Assunto do sermão: a última tentação do demônio a Cristo.
“Oh! que temeroso dia! Oh! que venturoso dia! Estamos no dia das tentações do demônio, e no dia das vitórias de Cristo. Dia em que o demônio se atreve a tentar em campo aberto ao mesmo Filho de Deus: Si Filius Dei es[2] – oh! que temeroso dia! Se até o mesmo Deus é tentado, que homem haverá que não tema ser vencido? Dia em que Cristo com três palavras venceu e derrubou três vezes ao demônio – oh! que venturoso dia! A um inimigo três vezes vencido, quem não terá esperanças de o vencer? Três foram as tentações com que o demônio hoje acometeu a Cristo: na primeira ofereceu, na segunda aconselhou, na terceira pediu. Na primeira ofereceu: Dic ut lapides isti panes fiant (ibid. 3) – que fizesse das pedras pão; na segunda aconselhou: Mitte te deorsum (ibid. 6) – que se deitasse daquela torre abaixo; na terceira pediu: Si cadens adoraveris me (ibid. 9) – que caído o adorasse. Vede que ofertas, vede que conselhos, vede que petições! Oferece pedras, aconselha precipícios, pede caídas. E com isto ser assim, estas são as ofertas que nós aceitamos, estes os conselhos que seguimos, estas as petições que concedemos. De todas estas tentações do demônio, escolhi só uma para tratar, porque para vencer três tentações é pouco tempo uma hora. E quantas vezes para ser vencido delas basta um instante! A que escolhi das três, não foi a primeira nem a segunda, senão a terceira e última, porque ela é a maior, porque ela é a mais universal, ela é a mais poderosa, e ela é a mais própria desta terra em que estamos. Não debalde a reservou o demônio para o último encontro, como a lança de que mais se fiava; mas hoje lha havemos de quebrar nos olhos. De maneira, cristãos, que temos hoje a maior tentação: queira Deus que tenhamos também a maior vitória. Bem sabeis que vitórias, e contra tentações, só as dá a graça divina; peçamo-la ao Espírito Santo por intercessão da Senhora, e peço-vos que a peçais com grande afeto, porque nos há de ser hoje mais necessária que nunca. Ave Maria.
É possível que promete o demônio um mundo por uma só adoração, por um só pecado? O demônio e o valor das almas. Em que andou errado o demônio ao oferecer a Cristo mundos? As balanças em que se pesam as almas. Se Cristo recebesse o mundo todo, e ficasse senhor dele, e entregasse sua alma ao demônio, ficaria bom mercador, faria bom negócio? O que fez hoje o demônio por uma alma alheia. A que diferente preço compra hoje o demônio as almas no Maranhão.
Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4, 9).
Que ofereça o demônio mundos, e que peça adorações! Oh! quanto temos que temer! Oh! quanto temos que imitar nas tentações do demônio! Ter que temer, e muito que temer nas tentações do demônio, coisa é mui achada e mui sabida; mas ter nas tentações do demônio que imitar? Sim, porque somos tais os homens por uma parte, e é tal a força da verdade por outra, que as mesmas tentações do demônio, que nos servem de ruína, nos podem servir de exemplo. Estai comigo.
Toma o demônio pela mão a Cristo, leva-o a um monte mais alto que essas nuvens, mostra-lhe dali os reinos, as cidades, as cortes de todo o mundo, e suas grandezas, e diz-lhe desta maneira: Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4, 9): Tudo isto te darei, se dobrando o joelho me adorares. – Há tal proposta? Vem cá, demônio, sabes o que dizes, ou o que fazes? É possível que promete o demônio um mundo por uma só adoração? É possível que oferece o demônio um mundo por um só pecado? É possível que não lhe parece muito ao demônio dar um mundo só por uma alma? Não, porque a conhece, e só quem conhece as coisas, as sabe avaliar. Nós, os homens, como nos governamos pelos sentidos corporais, e a nossa alma é espiritual, não a conhecemos; e como não a conhecemos, não a estimamos, e por isso a damos tão barata. Porém, o demônio, como é espírito, e a nossa alma também espírito, conhece muito bem o que ela é; e como a conhece, estima-a, e estima-a tanto, que do primeiro lanço oferece por uma alma o mundo todo, porque vale mais uma alma que todo o mundo. Vede se as tentações do demônio, que nos servem de ruína, nos podem servir de exemplo. Aprendamos sequer do demônio a avaliar e a estimar nossas almas. Fique-nos, cristãos, que vale mais uma alma que todo o mundo. E é tão manifesta verdade esta, que até o demônio, inimigo capital das almas, a não pode negar.
Mas, já que o demônio nos dá doutrina, quero-lhe eu dar um quinau. Vem cá, demônio, outra vez. Tu sábio? Tu astuto? Tu tentador? Vai-te daí, que não sabes tentar. Se tu querias que Cristo se ajoelhasse diante de ti, e souberas negociar, tu o renderas. Vais-lhe oferecer a Cristo mundos? Oh! que ignorância! Se quando lhe davas um mundo, lhe tiraras uma alma, logo o tinhas de joelhos a teus pés. Assim aconteceu. Quando Judas estava na Ceia, já o diabo estava em Judas: Cum jam diabolus misisset in cor ut traderet eum Judas[3]. – Vendo Cristo que o demônio lhe levava aquela alma, põe-se de joelhos aos pés de Judas, para lhos lavar, e para o converter. Tá, Senhor meu, reparai no que fazeis: não vedes que o demônio está assentado no coração de Judas? Não vedes que em Judas está revestido o demônio, e vós mesmo o dissestes: Unus ex vobis diabolus est[4]? – Pois, será bem que Cristo esteja ajoelhado aos pés do demônio? Cristo ajoelhado aos pés de Judas, assombro é, pasmo é; mas Cristo ajoelhado, Cristo de joelhos diante do diabo? Sim. Quando lhe oferecia o mundo, não o pôde conseguir; tanto que lhe quis levar uma alma, logo o teve a seus pés. Para que acabemos de entender os homens cegos, que vale mais a alma de cada um de nós que todo um mundo. As coisas estimam-se e avaliam-se pelo que custam. Que lhe custou a Cristo uma alma, e que lhe custou o mundo? O mundo custou-lhe uma palavra: Ipse dixit, et facta sunt[5] – uma alma custou-lhe a vida, e o sangue todo. Pois, se o mundo custa uma só palavra de Deus, e a alma custa todo o sangue de Deus, julgai se vale mais uma alma que todo o mundo. Assim o julga Cristo, e assim o não pode deixar de confessar o mesmo demônio. E só nós somos tão baixos estimadores de nossas almas, que lhas vendemos pelo preço que vós sabeis.
Espantamo-nos que Judas vendesse a seu Mestre e a sua alma por trinta dinheiros, e quantos há que andam rogando com ela ao demônio por menos de quinze! Os irmãos de José eram onze, e venderam-no por vinte dinheiros; saiu-lhes por menos de dois dinheiros cada um. Oh! se consideráramos bem os nadas por que vendemos a nossa alma! Todas as vezes que um homem ofende a Deus mortalmente, vende a sua alma: Venundatus est, ut faceret malum[6] – diz a Escritura falando de Acab. Eu, cristãos, não quero agora, nem vos digo que não vendais a vossa alma, porque sei que a haveis de vender; só vos peço que, quando a venderdes, que a vendais a peso. Pesai primeiro o que é uma alma, pesai primeiro o que vale, e o que custou, e depois eu vos dou licença que a vendais embora. Mas em que balanças se há de pesar uma alma? Nas balanças do juízo humano não, porque são mui falsas: Mendaces filii hominum in stateris[7]. – Pois, em que balança logo? Cuidaríeis que vos havia de dizer que nas balanças de S. Miguel, o Anjo, onde as almas se pesam? Não quero tanto: digo que as peseis nas balanças do mesmo demônio, e eu me dou por contente. Tomai as balanças do demônio na mão, ponde de uma parte o mundo todo, e da outra uma alma, e achareis que pesa mais a vossa alma que todo o mundo. Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4, 9): Tudo isto te darei, se me deres a tua alma. – Não lhe tirou com menos bala a Cristo, que com o mundo inteiro. Mas já que vos dou licença para vender, ponhamos este contrato do demônio em prática, e vejamos se é bom o partido.
Suponhamos, primeiramente, que o demônio no seu oferecimento falava verdade, e que podia e havia de dar o mundo; suponhamos mais que Cristo não fosse Deus, senão um puro homem, e tão fraco que pudesse e houvesse de cair na tentação. Pergunto: se este homem recebesse o mundo todo, e ficasse senhor dele, e entregasse sua alma ao demônio, ficaria bom mercador? Faria bom negócio? O mesmo Cristo o disse noutra ocasião: Quid prodest homini, si mundum universum lucretur, animae vero suae detrimen tum patiatur (Mt. 16, 26)? Que lhe aproveita ao homem ser senhor de todo o mundo, se tem a sua alma no cativeiro do demônio? – Oh! que divina consideração! Alexandre Magno e Júlio César foram senhores do mundo; mas as suas almas agora estão ardendo no inferno, e arderão por toda a eternidade. Quem me dera agora perguntar a Júlio César e a Alexandre Magno, que lhes aproveitou haverem sido senhores do mundo, e se acharam que foi bom contrato dar a alma pelo adquirir. – Alexandre, Júlio, foi bom serdes senhores do mundo todo, e estardes agora onde estais? – Já que eles me não podem responder, respondei-me vós. Pergunto: Tomáreis agora algum de vós ser Alexandre Magno? Tomáreis ser Júlio César? Deus nos livre. Como! se foram senhores de todo o mundo? É verdade, mas perderam as suas almas. Oh! cegueira! E para Alexandre, para Júlio César, parece-vos mau dar a alma por todo o mundo, e para vós parece-vos bom dar a alma pelo que não é mundo, nem tem de mundo o nome? Sabeis de que nasce tudo isto? De falta de consideração, de não tomardes o peso à vossa alma. Quid prodest homini[8]? – Que aproveitaria ao homem lucrar todo o mundo, e perder a sua alma? Aut quam dabit honro commutationem pro anima sua (Mt. 16, 26)? Ou que coisa há no mundo, pela qual se possa uma alma trocar?
O Todas as coisas deste mundo têm outra por que se possam trocar. O descanso pela fazenda, a fazenda pela vida, a vida pela honra, a honra pela alma; só a alma não tem por que se trocar. E, sendo que não há no mundo coisa tão grande por que se possa trocar a alma, não há coisa no mundo tão pequena e tão vil por que a não troquemos, e a não demos. Ouvi uma verdade de Sêneca, que, por ser de um gentio, folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini se ipso vilius: Não há coisa para conosco mais vil que nós mesmos. – Revolvei a vossa casa, buscai a coisa mais vil de toda ela, e achareis que é vossa própria alma. Provo. Se vos querem comprar a casa, o canavial, o escravo, ou o cavalo, não lhe pondes um preço muito levantado, e não o vendeis muito bem vendido? Pois, se a vossa casa, e tudo o que nela tendes, o não quereis dar, senão pelo que vale, a vossa alma, que vale mais que o mundo todo, a vossa alma, que custou tanto como o sangue de Jesus Cristo, por que a haveis de vender tão vil e tão baixamente? Que vos fez, que vos desmereceu a triste alma? Não a tratareis sequer como o vosso escravo e como o vosso cavalo? Se vos perguntam acaso por que não vendeis a vossa fazenda por menos do que vale, dizeis que a não quereis queimar. E quereis queimar a vossa alma? Ainda mal, porque haveis de queimar e porque há de arder eternamente.
Ora, cristãos, não seja assim: aprendamos ao menos do demônio a estimar nossa alma. Vejamos o que o demônio hoje fez por uma alma alheia, para que nós nos corramos e confundamos do pouco que fazemos pelas próprias. Vai-se o demônio ao deserto, está-se nele quarenta dias e quarenta noites, como se fora um anacoreta; e em todo este tempo esteve vigiando, e espreitando ocasião, e, tanto que a teve, não deixou pedra por mover para a conseguir. Vendo que não lhe sucedia, parte para Jerusalém, e, sendo tão inimigo de Deus, vai-se ao Templo, para persuadir a Cristo que se arrojasse do pináculo: Mitte te deorsum[9] – estuda livros, alega Escrituras, interpreta salmos: Scriptum est enfim; Quia angelis suis mandavit de te, et in manibus tollent te, ne forte offendas ad lapidem pedem tuum[10]. – Resistido também aqui, e vencido segunda vez o demônio, nem por isso desmaia: corre vales, atravessa montes, sobe ao mais alto de todos, e só por ver se podia fazer cair a Cristo, não repara em dar de uma só vez o mundo todo. E que o demônio faça tudo isto por uma alma alheia, e que façamos nós tão pouco pela própria! Que se ponha o demônio quarenta dias em um deserto para me tentar, e que eu nos quarenta dias da quaresma não tome um quarto de hora de retiro para lhe saber resistir! Que vigie o demônio, e espreite todas as ocasiões para me condenar, e que deixe eu passar tantas de minha salvação, e ocasiões que uma vez perdidas, não se podem recuperar! Que vá o demônio ao Templo de Jerusalém, distante tantas léguas, para me despenhar ao pecado, e que, tendo eu a igreja à porta, não me saiba ir meter em um canto dela, como o publicara, para chorar meus pecados! Que o demônio, para me persuadir, estude e alegue os livros sagrados, e que eu não abra um só espiritual, para que Deus fale comigo, já que eu não sei falar com ele! Que o demônio, vencido a primeira e segunda vez, insista, e não desmaie para me render, e que, se comecei acaso alguma obra boa, à primeira dificuldade desista, e não tenha constância nem perseverança em nada! Que o demônio, para me fazer cair, desça vales, e suba montes, e que eu não dê um passo para me levantar, tendo dado tantos para me perder! Finalmente, que o demônio, para granjear minha alma, não repare em dar no primeiro lanço o mundo todo; e que eu estime a minha alma tão pouco, que bastem os mais vis interesses do mundo para a entregar ao demônio! Oh miséria! Oh cegueira!
A que diferente preço compra hoje o demônio as almas, do que oferecia por elas antigamente! Já nesta nossa terra vos digo eu! Nenhuma feira tem o demônio no mundo onde lhe saiam mais baratas: no nosso Evangelho ofereceu todos os remos do mundo por uma alma, no Maranhão não é necessário ao demônio tanta bolsa para comprar todas: não é necessário oferecer mundos, não é necessário oferecer reinos, não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar de pindoba, e dois tapuias, e logo está adorado com ambos os joelhos: Si cadens adoraveris me[11]. – Oh! que feira tão barata! Negro por alma, e mais negra ela que ele! Esse negro será teu escravo esses poucos dias que viver, e a tua alma será minha escrava por toda a eternidade, enquanto Deus for Deus. Este é o contrato que o demônio faz convosco, e não só lho aceitais, senão que lhe dais o vosso dinheiro em cima. (…)”
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[1] Tudo isto te darei, se prostrado me adorares (Mt. 4, 9).
[2] Se és Filho de Deus (ibid. 6).
[3] Como já o diabo tinha metido no coração a Judas (Jo. 13, 2).
[4] Um de vós é o diabo (Jo. 6, 71).
[5] Ele disse, e foram feitas as coisas (SI. 148, 5).
[6] Foi vendido para fazer o mal (3 Rs. 21, 20).
[7] São mentirosos os filhos dos homens em balanças (S). 61, 10).
[8] De que aproveita ao homem (Mt. 16, 26)?
[9] Lança-te daqui abaixo (MI 4, 6).
[10] Porque escrito está: Que mandou aos seus anjos que cuidem de ti, e eles te tomarão nas palmas, para que não suceda tropeçares em pedra com o teu pé (ibid.).
[11] Se prostrado me adorares (Mt. 4, 9).
(Fonte: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01941.html – excertos. O título é nosso assim como alguns destaques)