Espiritualidade Gertrudiana
SANTA GERTRUDES: DA CHAGA DO AMOR
SANTA GERTRUDES: DA CHAGA DO AMOR
Sete anos mais tarde, dias antes do Advento e certamente com vossa permissão, ó Divino Autor de todo o bem, eu convencera uma pessoa a acrescentar por mim, na oração que rezava diariamente ao Crucificado (post anterior, Vide Aqui), as seguintes palavras: “Por vosso Coração transpassado , ó Senhor amorosíssimo, transpassai o coração de Gertrudes com os dardos de vosso amor, para que ali nada permaneça de terreno e somente resida a força de vossa divindade”.
Sendo essa oração, como creio, um desafio a vosso amor, aconteceu que no domingo em que se canta “Gaudete in Domino”(1), quando, por efeito de vossa misericordiosa liberalidade, me aproximava da comunhão de vosso Corpo e vosso Sangue, minha alma foi tomada de veemente desejo, sob o efeito do qual exclamei: “Senhor, eu não sou digna da menor de vossas graças, mas, pelos méritos e desejos de todos os que estão aqui, suplico-Vos que transpasseis o meu coração com a flecha de vosso amor!”
Logo compreendi, pela infusão da graça interior e por um sinal externo que apareceu sobre o crucifixo, que meu pedido penetrara em vosso Coração. Com efeito, depois de receber o Sacramento da vida, voltando ao meu lugar, pareceu-me ver sair do lado direito do direito do Crucifixo pintado sobre o meu livro, um raio de sol agudo como uma flecha. Esse raio projetou-se com grande força, recolheu-se, projetou-se de novo e permaneceu fixo um momento a fim de atrair docemente a Ele todo o meu afeto.
Contudo, meus desejos ainda não estavam satisfeitos quando, na quarta-feira seguinte(2),dia em que os fieis depois da Missa honram o grande mistério de vossa adorável Anunciação e Encarnação, juntei-me a eles, ainda que com menor fervor. De repente, aparecestes diante de mim e me feristes o coração, dizendo: “Que todas as afeições de tua alma venham concentrar-se aqui, isto é, que os teus prazeres, esperanças, alegrias, dores, apreensões e demais sentimentos se fixem em meu amor”.
Pensei logo no que sempre ouvira sobre os cuidados que uma ferida reclama: banhos, unções, ataduras. Mas ainda não me havíeis ensinado como me desobrigar de tais cuidados. Somente o fizestes mais tarde, por meio de uma pessoa* que, não tenho dúvida, para vossa glória, estava habituada a ouvir com maior delicadeza e perseverança do que eu o doce murmúrio de vossas amorosas palavras. Ela me aconselhou a honrar com constante devoção o amor de vosso Coração traspassado sobre a Cruz; a colher, nessa fonte de caridade que jorra, por efeito de um amor inefável, a água da verdadeira piedade que lava toda a ofensa; a tomar, na efusão de ternura que deriva desse amor, o óleo do reconhecimento, como remédio para toda dor; enfim, a encontrar o curativo de justificação, nessa obra de caridade que realizastes com incompreensível amor, para Vos dirigir todos os meus pensamentos, palavras e obras e assim permanecer inseparavelmente unida a Vós.
Ó Deus, que a força desse amor, cuja plenitude reside naquele que, sentado à vossa direita, se fez o osso de meus ossos e a carne de minha carne(3), supra o que minha malícia e minha falta de coragem subtraíram da força dessa devoção! É por Ele, na virtude do Espírito Santo, que nos fizestes agir com tão grande compaixão, respeito e humildade. Por Ele eu Vos ofereço a dor que sinto por ter ultrajado vossa bondade infinita, pecando por pensamentos, palavras e atos e, sobretudo por não ter aproveitado, com cuidado e reverência, os dons que recebera. Não tivésseis dado como lembrança vossa, a mim tão indigna, mais do que um insignificante fio de linho, eu deveria recebê-lo com um respeito infinito.
Ó Deus, que conheceis os segredos de meu coração, bem sabeis que, para escrever e publicar estas coisas, tive de combater o meu gosto pessoal e de considerar que, tendo aproveitado tão pouco as vossas graças, elas não poderiam ter sido concedidas apenas para minha edificação, pois a vossa Sabedoria eterna não se engana em nada.
Ó dispensador de todos os bens, que gratuitamente me cumulastes de tantas graças, fazei que, ao ler este escrito, pelo menos o coração de um de vossos amigos se comova com vossa condescendência e Vos agradeça por terdes, por amor às almas, conservado tanto tempo, no meio das manchas do meu coração, uma pedra preciosa de tal preço. Que ele louve, exalte e implore vossa misericórdia, dizendo de coração e de boca: “Te Deus Patrem ingenitum, etc.”: “Ó Pai não gerado, etc.”, “Te jure laudant, etc.”: “Louva-se a Vós com justiça, etc.”. “Tibi decus et imperium, etc.”: “A Vós a honra e o império, etc.”. “Benedictio et claritas, etc.”: “Bênção e glória, etc.”(4) É assim que se Vos pode oferecer uma reparação à minha insuficiência.
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(1) No Terceiro Domingo do Advento.
(2) Féria das têmporas do Advento, em que se lê, no Evangelho: Missas est.
(3) Alusão às palavras do Gênesis, II, 23: Hoc nunc, os ex ossibus.
(4) Alusão a partes de antífonas do Ofício da Santíssima Trindade.
* Cremos que Santa Gertrudes refere-se a Santa Matilde.
(Fonte: opúsculo Segredos do Sagrado Coração – Revelações de Santa Gertrudes, Livro II, Editora Artpress, 2ª edição/2011, Cap. V, pp. 24-27 – Destaque e salmo acrescidos)