Espiritualidade Gertrudiana
SANTA GERTRUDES: DA IMPRESSÃO DAS SANTÍSSIMAS CHAGAS DE CRISTO
SANTA GERTRUDES: DA IMPRESSÃO DAS SANTÍSSIMAS CHAGAS DE CRISTO
Quando começaram esses favores divinos, creio que no primeiro ou no segundo ano, durante o inverno, achei num livro esta pequena oração:
“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, fazei-me aspirar por Vós de todo coração com desejos ardentes e alma sequiosa, e respirar em Vós, ó suprema e verdadeira Beatitude! Ó misericordioso Senhor! Gravai em meu coração vossas chagas divinas por meio de vosso precioso sangue, para que eu veja nele, ao mesmo tempo, vossas dores e vosso amor. Que a lembrança de vossas chagas permaneça sempre no segredo do meu coração, para nele excitar uma ardente compaixão e acender o fogo do vosso amor. Fazei-me sentir o vazio das criaturas e sede a única doçura de minha alma.”
Eu gostava muito das palavras dessa oração e de recitá-la com frequência. Ora, Vós, que jamais repelis os desejos dos humildes, me escutáveis, pronto a me atender. Com efeito, pouco tempo depois e ainda no mesmo inverno, após as Vésperas, fui assentar-me no refeitório, ao lado de uma pessoa a quem desvendara algo dos segredos de minha alma.
De passagem, explico, para esclarecer a quem ler este escrito: muitas vezes, depois dessas confidências, senti um aumento de fervor em minha devoção, sem poder afirmar, ó meu Deus, se era Vosso espírito que me levava a revelar meus segredos ou simplesmente a afeição que tinha a essa pessoa. Entretanto, ouvi alguém muito experiente dizer que é útil abrir sua alma, não a todos indiferentemente, mas a pessoas de quem conhecemos a fiel afeição e que, além disso, estejam acima de nós e a que devamos respeitar por terem mais idade.
Como disse, ignoro o que me fazia agir assim e submeto esse meu procedimento a Vós que sois meu fiel Dispensador, Vós cujo Espírito mais doce que me fortalece a virtude dos Céus(1). Se me deixei levar pela afeição humana, ó meu Deus, é bem justo que eu mergulhe em um abismo de gratidão, pois Vos dignastes juntar a poeira do meu nada ao ouro de vossa infinita grandeza, isto é, engastar meu coração as pérolas de vossa graça.
Naquele momento, meditava sobre as palavras dessa oração, quando senti que, pela ação divina, recebia os favores há tanto tempo desejados, apesar da minha indignidade.
Foi me dado conhecer espiritualmente que acabáveis de imprimir os estigmas adoráveis de vossas santíssimas chagas em alguns lugares de meu coração. Por essas feridas, curaste minha alma e me destes de beber na taça inebriante que contém o néctar do amor.
Mas minha indignidade não esgotara ainda o abismo de vossa ternura. Recebi ainda, de vossa superabundante liberalidade o dom magnífico de que nunca poderia queixar-me de não receber alguma graça especial se, todos os dias e com frequência, eu recitasse cinco versículos do Salmo “Benedic anima mea”(2), visitando em espírito as marcas do amor impressas em meu coração.
Realmente ao recitar o primeiro versículo: “Benedic anima mea”, recebi a graça de colocar sobre as chagas de Vossos pés sagrados toda a imundície de meus pecados e o vazio das delícias do mundo.
Ao segundo versículo, “Benedic et noli oblivisci”, lavei todas as manchas de deleite carnal e passageiro nessa fonte amorosa de onde o sangue e a água jorraram para mim.
Ao terceiro versículo, “Qui propitiatur”, semelhante à pomba que se apressa em fazer o ninho na cavidade da pedra, refugiei-me na chaga de vossa mão esquerda para ali gozar o repouso da alma.
Ao quarto versículo, “Qui redimite de interita”, aproximando-se de vossa mão direita, retirei, com confiança, dos tesouros que ela contém, tudo o que me faltava para a perfeição das virtudes.
Estando minha alma assim purificada de manchas e enriquecidas de méritos, possa eu, agora que esses favores me tornaram menos indigna, gozar de vossa presença doce e desejável e de vossos castos ósculos, como o quinto versículo: “Qui replet in bonis”, indica.
Além dessas liberalidades, acabastes de dar à minha alma o que Vos pedia aquela oração, isto é, a graça de conhecer vossas dores e vosso amor, em vossos preciosos estigmas. Oh dor! Isso foi por pouco tempo, não porque retiraste de mim esses favores, mas porque os perdi, por lamentável ingratidão e negligência. Todavia, vossa imensa misericórdia e generosa ternura pareceram não notar meus esquecimentos e me conservaram, até hoje, apesar de minha indignidade, o primeiro e maior desses dons, que é a marca de vossas chagas sagradas. Por esse favor, ó meu Deus, honra e poder, louvor e grande alegria, Vos sejam dados por todos os séculos!
SALMO 103(102)
[Hino ao amor paternal de Deus. De Davi]
Bendize, ó minha alma, ao Senhor,
e todo o meu ser ao seu nome santo!
Bendize, ó minha alma, ao Senhor,
e não esqueças nenhum de seus benefícios.
Ele perdoa tuas culpas todas,
e cura todos os teus males.
Ele redime tua vida da cova,
e te coroa de amor e compaixão.
Ele sacia teus anos de bens
e, como a da águia, tua juventude se renova.
O Senhor faz justiça
e defende todos os oprimidos;
revelou seus caminhos a Moisés,
e suas façanhas aos filhos de Israel.
O Senhor é compaixão e piedade,
lento para a cólera e cheio de amor;
ele não vai disputar perpetuamente,
e seu rancor não dura para sempre.
Nunca nos trata conforme os nossos erros,
nem nos devolve segundo as nossas culpas.
Como o céu se levanta sobre a terra,
seu amor se levanta por aqueles que o temem.
Como o oriente está longe do ocidente,
ele afasta de nós nossas transgressões.
Como um pai é compassivo com seus filhos,
o Senhor é compassivo com aqueles que o temem:
porque ele conhece a nossa estrutura,
ele se lembra do pó que somos nós.
O homem … seus dias são como a relva:
ele floresce como a flor do campo;
roça-lhe o vento e já não existe,
e ninguém mais reconhece o seu lugar.
Mas o amor do Senhor … existe desde de sempre,
e para sempre existirá por aqueles que o temem;
sua justiça é para os filhos dos filhos,
para os que observam sua aliança
e se lembram de cumprir as suas ordens.
O Senhor pôs no céu o seu trono
e sua realeza governa o universo.
Bendize ao Senhor, anjos seus,
executores poderosos de suas ordens,
obedientes ao som da sua palavra.
Bendize ao Senhor, seus exércitos todos,
ministros que cumpris a sua vontade.
Bendize ao Senhor, todas as suas obras,
nos lugares todos que ele governa.
Bendize, ó minha alma, ao Senhor!
✟ A paternidade de Deus é, no Antigo Testamento, uma comparação, uma imagem sugestiva. Todavia, quando o Filho se torna homem, nosso irmão, faz-nos todos filhos de Deus. A paternidade de Deus já não é uma simples imagem, mas a grande realidade da nossa vida: chamamo-nos e somos filhos de Deus.
“Vede que prova de amor nos deu o Pai: que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos” (1Jo 3,1). “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Com efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes o espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai! O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus” (Rm 8,14-17).
Em Cristo revela-se o amor do Pai, sua compreensão dos homens, sua misericórdia perpétua.
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(1) Alusão ao versículo 6 do Salmo XXXII. Verbo Domini coeli firmati sunt, et spiritu oris ejus virtus eorum. Por sua palavra, os céus se firmaram e de sopro de sua boca vem a sua força.
(2) Salmo 102: “Minha alma bendiga ao Senhor”.
(Fontes: 1. opúsculo Segredos do Sagrado Coração – Revelações de Santa Gertrudes, Livro II, Editora Artpress, 2ª edição/2011, Cap. IV, pp. 20-23; 2. salmo: livro Salmos e Cânticos a Oração do Povo de Deus, editora Paulus, 4ª edição/1982, pp. 286-288 – Destaque e salmo acrescidos)