SÃO PEDRO IN GALLICANTU
“E, enquanto ainda falava, o galo cantou. Então o Senhor se voltou e olhou para Pedro. E Pedro lembrou-se da palavra que o Senhor lhe tinha dito: “Hoje, antes que o galo cante, três vezes me negarás”. Então Pedro saiu do pátio e pôs-se a chorar amargamente”.
O batalhão, o comandante e os guardas dos judeus prenderam Jesus e o amarraram. Primeiro, conduziram-no a Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote daquele ano. Caifás é quem tinha aconselhado aos judeus: “É conveniente que um só homem morra pelo povo”[1].
Os quatro evangelistas relatam o interrogatório a que os príncipes dos sacerdotes e o Sinédrio submeteram Jesus. Realizou-se em casa de Caifás[2]. Até aí conseguiram chegar duas testemunhas excepcionais: Simão Pedro e um outro discípulo seguiam Jesus. Este discípulo era conhecido do sumo sacerdote. Ele entrou com Jesus no pátio do sumo sacerdote. Pedro ficou do lado de fora, perto da porta. O outro discípulo, que era conhecido do sumo sacerdote, saiu, conversou com a criada que atendia a porta e levou Pedro para dentro[3].
Durante o processo, contrastam as atitudes do Mestre e de São Pedro. Perante as acusações injustas, as incriminações infundadas, os testemunhos falsos, os ultrajes… Jesus calou-se. Depois, quando devia proclamar a verdade, afirmou-a com serenidade. Pedro, atemorizado pelos servos, negou que tivesse algo a ver com o Mestre: não o conheço[4], não sei o que dizes[5], não conheço esse homem[6].
E no mesmo instante, quando ainda falava, cantou o galo. Voltando-se o Senhor, olhou para Pedro. Então Pedro se lembrou da palavra do Senhor: Hoje, antes que o galo cante, negar-me-ás três vezes. Saiu dali e chorou amargamente[7].
Em Jerusalém, este episódio situa-se na ladeira oriental do monte Sião, não muito longe do Cenáculo, ou seja, em um bairro da cidade que na época de Jesus Cristo era residencial, e dava para as torrentes do Cédron e Ginon. Os estudiosos propõem pelo menos duas localizações diferentes para a casa de Caifás nessa zona, mas os resultados arqueológicos são mais sugestivos a favor de São Pedro in Gallicantu. Este santuário eleva-se numa propriedade que pertence aos Agostinhos Assuncionistas desde o final do séc. XIX. As escavações realizadas de 1888 a 1909 e de 1992 a 2002 trouxeram à luz os restos de uma mansão da época de Herodes, com moinhos, cisternas e dependências rupestres. Encontrou-se também o umbral de uma porta, em pedra bem lavrada, com uma inscrição mostrando o lugar onde se depositavam esmolas para o perdão dos pecados, e duas coleções de medidas e pesos das que se utilizavam no Templo. Esta casa teria sido venerada mais tarde pelos cristãos, que construíram uma igreja em cima dela no séc. V, de que se conservam alguns pavimentos em mosaico. O centro da basílica era formado por uma cisterna profunda, que inicialmente devem ter sido banhos rituais judaicos.
É provável que um antigo testemunho do séc. VI se refira a este santuário: “do Gólgota a Santa Sião são duzentos passos. Esta é a mãe de todas as igrejas, pois foi fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo e pelos apóstolos. Foi a casa de São Marcos evangelista. Desde Santa Sião até à casa de Caifás, que agora é a igreja de São Pedro, são mais ou menos cinquenta passos”[8].
O edifício bizantino sofreu a sorte de muitos outros templos da Terra Santa: destruído no séc. VII pelos persas foi restaurado; depois de este segundo santuário ter sido destruído no séc. XI, os cruzados construíram uma terceira basílica no séc. XII; também foi arrasada, e mais tarde substituída por um pequeno oratório, que finalmente desapareceu no séc. XIV. Os vestígios de cada etapa ficaram sepultados até 1887, quando os religiosos assuncionistas tomaram conta do terreno.
A igreja atual foi consagrada em 1931, e completamente renovada em 1997. Dispõe de dois níveis e uma cripta: na capela superior, coberta por uma cúpula decorada com mosaicos e vitrais, recorda-se o processo de Jesus perante o Sinédrio; no oratório intermediário, onde o solo rochoso começa a aflorar sobre o pavimento, relembram-se as negações de Pedro, o seu choro e o encontro com o Senhor ressuscitado nas margens do lago da Galileia, quando o confirmou na sua missão; mais abaixo, na cripta, encontram-se várias grutas cujo uso através dos séculos é difícil de precisar, e a cisterna venerada desde a época bizantina, conhecida como o poço profundo.
Esta última revela-se de grande interesse por se tratar da parte da casa original que atraiu a atenção dos cristãos desde os tempos mais antigos: o primeiro acesso à cavidade, por uma escada e uma porta dupla, mostra que serviu para os banhos de purificação judaicos; em algum momento continuou-se escavando, para aumentar a profundidade e convertê-la em uma cisterna, e abriu-se um orifício circular na abóbada. Os sinais acrescentados pelos fiéis – três cruzes gravadas na cintura interna da abertura, além da silhueta de um orante e outras sete cruzes pintadas nas paredes do poço – mostram que no séc. V o lugar era considerado como o presídio onde Jesus aguardou a aurora de Sexta-Feira Santa. Procurando continuar essa tradição, os peregrinos atuais meditam aí sobre os padecimentos de Cristo, seguindo as palavras do salmista:
Vós me lançastes em profunda fossa,
nas trevas de um abismo.
Sobre mim pesa a vossa indignação,
vós me oprimis com o peso das vossas ondas.
Afastastes de mim os meus amigos,
objeto de horror me tornastes para eles,
estou aprisionado sem poder sair,
meus olhos se consomem de aflição.
Todos os dias eu clamo para vós, Senhor,
estendo para vós as minhas mãos[9].
No exterior da igreja apreciam-se outros restos arqueológicos, entre os quais se destaca uma rua escalonada perpendicular à ladeira. Unia os bairros nobres, na zona alta, com os populares, situados ao longo da torrente do Cédron, perto dos pontos de abastecimento de água: a fonte de Ginón e a piscina de Siloé. Sem dúvida, o caminho existia em tempos do Senhor – embora talvez não empedrado –, e é muito provável que o percorresse em numerosas ocasiões: particularmente, na noite de Quinta-Feira Santa, primeiro acompanhado pelos Apóstolos, para se dirigir do Cenáculo para Getsêmani, e depois levado à força pelo tropel de gente que o tinha prendido no horto das Oliveiras, e que o levou a casa do sumo sacerdote.
No recinto do santuário, os peregrinos também têm oportunidade de contemplar uma maquete em grande escala que representa Jerusalém na época bizantina. Reproduz detalhadamente as sete igrejas que foram construídas entre o séc. IV e o VI: o Santo Sepulcro, Santa Sião – que agrupava a Dormição e o Cenáculo –, Santa Maria da Probática – que hoje coincide mais ou menos com Santa Ana –, São João Batista – onde estava o palácio de Herodes e se ergue agora a Cidadela –, Siloé – sobre a piscina –, Santa Maria – conhecida como a Nea, também desaparecida – e São Pedro.
Durante a sua estadia na Terra Santa, em 1994, Dom Álvaro del Portillo rezou em S. Pedro in Gallicantu no dia 21 de Março à tarde, na véspera de regressar a Roma.
Pedro saiu dali e chorou amargamente
Quando o galo cantou, Voltando-se o Senhor, olhou para Pedro. Então Pedro se lembrou da palavra do Senhor: Hoje, antes que o galo cante, negar-me-ás três vezes. Saiu dali e chorou amargamente[10]. Só São Lucas registra aquele gesto misericordioso de Jesus: O Senhor converteu Pedro – que O tinha negado três vezes – sem lhe dirigir sequer uma censura: com um olhar de Amor. – É com esses mesmos olhos que Jesus nos olha, depois das nossas quedas. Oxalá possamos dizer-Lhe, como Pedro: ‘Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que eu te amo!’, e mudemos de vida[11].
Comentando esta passagem, Santo Ambrósio explica: “todos aqueles para quem Jesus olha, choram. Na primeira vez, Pedro renegou e não chorou: era porque o Senhor não tinha olhado para ele. Negou-O uma segunda vez e também não chorou, pois o Senhor ainda não tinha olhado para ele. Porém, quando O negou pela terceira vez, Jesus cravou nele o seu olhar, e começou a chorar amarguradamente (…). Pedro chorou e com profunda amargura; chorou para que as suas lágrimas pudessem lavar o seu pecado. Também tu deves chorar a tua culpa com lágrimas se queres conseguir o perdão no mesmo momento e instante em que Cristo te olhe. Se te acontece cair em algum pecado, Ele que está como testemunha no mais íntimo do teu ser, olha-te para te fazer recordar e confessar o teu erro”[12].
Embora o pecado mortal destrua a caridade no coração do homem e o afaste de Deus[13], a misericórdia do Senhor não nos abandona, a conversão é sempre possível: “Convido todo o cristão – afirma o Santo Padre –, em qualquer lugar e situação em que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele (…). Quando alguém dá um pequeno passo em direção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços abertos a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus Cristo: ‘Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços redentores.’ Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma vez mais: Deus nunca se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir a sua misericórdia”[14].
Enquanto combatemos – um combate que há de durar até a morte -, não excluas a possibilidade de que se ergam, violentos, os inimigos de fora e de dentro. E, como se não bastasse esse lastro, hão de amontoar-se na tua mente, de quando em quando, os erros cometidos, talvez abundantes. Digo-te em nome de Deus: não desesperes. Quando isso suceder – aliás, não é forçoso que suceda, nem será o habitual -, converte essa ocasião em motivo para te unires mais ao Senhor; porque Ele, que te escolheu como filho, não te há de abandonar: permite a prova, sim, mas para que ames mais e descubras com mais clareza a sua contínua proteção, o seu Amor (…).
Para a frente, aconteça o que acontecer! Bem agarrado ao braço do Senhor, considera que Deus não perde batalhas. Se te afastas dEle por qualquer motivo, reage com a humildade de começar e recomeçar; de fazer de filho pródigo todos os dias, até mesmo repetidas vezes nas vinte e quatro horas do dia; de acertar o coração contrito na Confissão, verdadeiro milagre do Amor de Deus. Neste sacramento maravilhoso, o Senhor limpa a tua alma e te inunda de alegria e de força, para não desfaleceres no combate e para retornares sem cansaço a Deus, mesmo quando te pareça que tudo está às escuras. Além disso, a Mãe de Deus, que é também Mãe nossa, te protege com a sua solicitude maternal e te firma nos teus passos[15].
Os evangelistas não narram se São João permaneceu na casa de Caifás ou saiu atrás de São Pedro, nem sequer sabemos onde cada um se dirigiu depois. Mas a São João encontramo-lo mais tarde ao pé da Cruz, junto a Nossa Senhora: Antes, sozinho, não podias… – Agora, recorreste à Senhora, e, com Ela, que fácil![16].
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[1] Jo 18, 12-14.
[2] cf. Mt 26, 57.
[3] Mt 26, 57.
[4] Lc 22, 58.
[5] Mt 26, 70.
[6] Mc 14, 71.
[7] Lc 22, 60-62.
[8] Theodosii, De situ Terræ Sanctæ, 7 (CCL 175, 118)
[9] Sal 88, 7-10.
[10] Lc 22, 60-62.
[11] Sulco, nº. 964
[12] Santo Ambrósio, Expositio Evangelii secundum Lucam, X, 89-90
[13] cf. Catecismo da Igreja Católica, nº. 1855
[14] Francisco, Exort. Apost. Evangelii gaudium, 24-XI-2013, nº. 3
[15] Amigos de Deus, nº 214.
[16] Caminho, nº. 513.
(Fonte: OpusDei.org – Alguns destaques acrescidos)