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O ANO LITÚRGICO
CICLO DE PÁSCOA (SETUAGÉSIMA — QUARESMA — PAIXÃO)
O ANO LITÚRGICO
CICLO DE PÁSCOA (SETUAGÉSIMA — QUARESMA — PAIXÃO)
PARTE I*
Tempo da Setuagésima.
O segundo ciclo do ano litúrgico** tem como centro de interesse a festa de Páscoa que se prolonga até Pentecostes.
Divide-se em Tempo da Setuagésima (3 domingos), da Quaresma (4 domingos) e da Paixão (2 domingos). Em seguida vem o período de cinquenta dias, de Páscoa a Pentecostes, pois o mistério pascal comporta, não somente a vitória de Jesus e sua gloriosa passagem deste mundo ao Pai, mas também a vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos, conforme a promessa que lhes fizera o Senhor.
Tende assim toda a obra do Redentor a promulgação oficial da Igreja, cuja missão é dilatar o reino de Deus e de Cristo, pondo as almas sob o domínio do Espírito Santo.
Em Pentecostes, quando o Espírito divino toma posse da Igreja nascente, é que por ela principia ele a luta vitoriosa contra o Espírito do mal. Também a partir desse momento é que infunde, ainda por ela, nas almas, a vida espiritual e divina.
Setuagésima.
A partir da Setuagésima a Igreja começa, no ofício divino, pelo livro de Gênesis, seguido de Números etc., a leitura continua da Sagrada Escritura (lectio continua).
E toda a História Santa, em suas grandes linhas, que assim cada ano a liturgia evoca, explicando-lhe o sentido típico ou simbólico. Não afirmou Nosso Senhor várias vezes que a Escritura falava dele? À luz do Espírito Santo, os Apóstolos, e em seguida os Padres da Igreja, não estabeleceram um elo de continuidade entre a primeira fase do drama da redenção e a da vida de Cristo e de sua Igreja que realizam as figuras, promessas e profecias daquela, numa espécie de recapitulação bem mais perfeita?
A história da criação e da queda (Setuagésima), a de Noé e do dilúvio (Sexagésima), a de Abraão e da Aliança (Quinquagésima), de Jacó (2ª semana da Quaresma), de José (3ª semana da Quaresma), de Moisés conduzindo o povo de Deus através do deserto para a terra prometida (4ª semana da Quaresma) etc…, são outros tantos acontecimentos que se referem aos tempos messiânicos.
Assim, na epístola da Setuagésima e na do 9º domingo depois de Pentecostes, que é continuação da primeira, S. Paulo põe em paralelo o êxodo israelita e a conduta dos cristãos.
“Nossos pais estiveram todos sob a nuvem, atravessaram todos o mar Vermelho, e na nuvem e no mar foram todos batizados em Moisés. Comeram todos o mesmo alimento espiritual, e beberam todos a mesma bebida espiritual…, apesar disto, para com a maior parte deles Deus não conservou sua benevolência” (1 Cor 10, 1-15). “Tudo isto lhes aconteceu para nos servir de exemplo e foi escrito para nossa instrução” (1 Cor 10, 11-12).
Têm os cristãos à sua disposição o sacramento do batismo e a Eucaristia, figurados pela coluna de nuvem e pela passagem do mar Vermelho, pelo maná e pela água do rochedo. Mas para assegurarem a salvação, devem precaver-se e não incidir nas faltas em que caíram os hebreus.
Não temos que nos alongar aqui no desenvolvimento do paralelismo entre as duas “economias” do antigo e do novo povo de Deus. Só voltaremos a ele no comentário dos textos litúrgicos em que se trata formalmente do Espírito Santo; por exemplo, no capítulo V, onde se vê a ação que esse divino Espírito opera pela Igreja, mediante os sacramentos.
Tempo da Quaresma. Quarta-feira de cinzas.
A Igreja abre a Quaresma impondo cinzas aos fieis e rogando “que eles se tornem cheios do espirito de compunção.” O celebrante termina esse rito pela oração seguinte, que timbra em acentuar o combate espiritual durante a santa quarentena:
“Concedei-nos, Senhor, a graça de encetarmos com santos jejuns o combate da milícia cristã, a fim de que, devendo combater contra os espíritos malignos, sejamos munidos dos auxílios da abstinência.”
E, na mesma quarta-feira de cinzas, no evangelho da missa, extraído do “sermão da montanha”, Jesus nos fala do espírito de que devemos ser animados para agradarmos a Deus e acumular tesouros no céu.
“Quando jejuas, perfuma-te a cabeça e lava o teu rosto a fim de que não mostres aos homens que jejuas, mas a teu Pai que está presente no secreto; e teu Pai, que vê no secreto, te dará a recompensa” (MT 6, 17-18).
“Ajuntai tesouros no céu… Porque onde está o teu tesouro, aí está também teu coração” (Mt 6, 20-21).
O que caracteriza a nova lei é assegurar o pleno desabrochar da lei antiga de Moisés, aperfeiçoando-lhe o espírito. Com efeito, são nossas disposições interiores, nossa intenção, nossa afeição, sobrenaturalizadas pelo Espírito Santo, que dão às nossas práticas exteriores verdadeiro valor aos olhos de Deus. Por isto, na oração da missa da sexta-feira depois das Cinzas, a Igreja dirige a Deus esta prece:
“Dignai-vos, Senhor, acompanhar com vossa graça misericordiosa os jejuns que começamos, a fim de que, cumprindo exteriormente esta observação, possamos também praticá-la com sinceridade de coração.”
Domingos da Quaresma.
A boa observância da Quaresma, em que se empenham, simultaneamente, corpo e alma, é um efeito da graça divina; assim, na epístola do primeiro domingo da Quaresma, S. Paulo nos exorta: “a não recebermos em vão a graça de Deus” (2 Cor. 6, 1).
Ele mesmo, como ministro de Deus, deixa-se conduzir “pelo Espírito Santo” e, com “a força de Deus”, sustenta o bom combate, empregando “as armas da justiça” (2 Cor. 6, 6-7), isto é, esforçando-se por resistir ao mal e praticar a virtude.
Mas nosso modelo por excelência, muito particularmente durante a santa quarentena que nos prepara cada ano para as festas pascais, é Jesus tentado pelo demônio no deserto e repelindo-o vitoriosamente como no-lo mostra o evangelho do primeiro domingo da Quaresma.
A queda de Adão e de todo o gênero humano foi ocasionada pelo demônio, “príncipe deste mundo” (Jo. 12, 3), como o denomina Cristo que o veio combater para restabelecer nas almas o reino de Deus.
Lê-se na primeira epístola de S. João:
“Quem comete o pecado é do demônio, porque o demônio peca desde o princípio. Para destruir as obras do demônio é que o Filho de Deus apareceu” (2ª lição, segunda-feira depois da Ascensão — 1 Jo. 3,8).
Desde logo se compreende porque S. Mateus diz:
“Foi Jesus levado pelo Espirito ao deserto, a fim de ser tentado, pelo demônio” (Mt 4, 1).
Por três vezes respondeu Cristo ao tentador: Scriptum est, opondo-lhe um texto do Deuteronômio, referente à permanência dos Israelitas no deserto. Mostrava, assim, seu desejo de reparar a tríplice desobediência do povo de Israel por ocasião do êxodo no deserto, e também quanto é poderosa a palavra de Deus exarada, com a assistência do Espírito Santo, nas Sagradas Escrituras.
“Cristo, diz Sto. Tomas, quis ser tentado para nos servir de exemplo e de auxílio nas tentações, e para nos ensinar de que modo as devemos vencer” (Summa Theol. 3.º Q. 41, a.1, ad 4.).
O Evangelho do terceiro domingo da Quaresma mostra-nos novamente Jesus às voltas com o demônio.
“Naquele tempo — diz S. Lucas — estava Jesus a expulsar um demônio, e este era mudo. O demônio saiu, o mudo falou e as turbas ficaram maravilhadas” (Lc. 11, 14).
Trata-se de um caso de possessão diabólica, acrescido de sistemática oposição por parte de alguns escribas (Mc. 3, 22) e fariseus (Mt. 12, 24).
Chegaram esses adversários de Jesus a acusá-lo até de conivência com Belzebu, chefe dos demônios, para operar essa expulsão.
“Conhecendo-lhes os pensamentos, disse-lhes Jesus: Se Satanás está dividido contra si mesmo, como subsistirá o seu reino?” (Lc. 11, 18).
Não, Satanás não se destrói a si mesmo: ele não cede senão a um mais forte do que ele.
“Quando um homem forte e bem armado guarda seu palácio, os seus bens estão seguros. Caso, entretanto, sobrevenha outro mais forte e o vença, tira-lhe a armadura em que confiava e reparte os seus despojos” (Lc. 11, 21-22).
O forte armado, de que fala o Salvador, outro não é senão Satanás que dominava tranquilamente o mundo. Mas um mais forte do que ele vem por termo a seu domínio sobre os homens, que lhe são sujeitos por suas paixões e seus vícios.
“Se é pelo dedo de Deus que expulso os demônios, é que chegou para vós o reino de Deus” (Lc. 11, 20)
A expressão “dedo de Deus” designa o “Espírito de Deus”, como um texto paralelo de S. Mateus o indica (Mt. 12, 28). Também o hino de Vésperas de Pentecostes diz do Espírito Santo que ele é o “dedo da destra do Pai” (Veni, Creettor Spiriíus). Aliás, comentando o texto de S. Lucas, que acabamos de citar, pergunta S. Gregório: “Que significam os dedos do Redentor senão os dons do Espírito Santo?” ( 7ª lição, II dom. depois de Pentecostes).
O Verbo encarnado, cuja alma estava toda cheia do “Espírito de Deus”, do “Espírito Santo”, possuía um poder divino incomparavelmente mais forte que o do demônio. Demonstrou-o libertando o infeliz possesso que era tiranizado por Satanás.
Dois reinos espirituais se defrontam: o do Espírito do mal, do “Espírito imundo”, como o denomina o evangelho citado (Lc. 11, 24) e o reino do Espírito de Deus, do Espírito de santidade que, em Jesus, vai garantir a vitória. Não podem, pois, os homens ficar indiferentes ante essa luta entre Cristo e Satanás.
“Quem não está comigo está contra mim, declara o Salvador; e quem não recolhe comigo, dispersa” (Lc. 11, 23).
Na missa da quarta-feira da quarta semana da Quaresma, o profeta Ezequiel prediz a efusão da água viva e do Espírito Santo (1ª leitura). A Igreja vê nisso alusão ao batismo que transforma interiormente as almas.
“Derramarei sobre vós uma água pura, e sereis purificados de todas as vossas imundícies. Dar-vos-ei um coração novo, e porei um novo espírito em vós” (Ez. 36, 25-26).
Na Páscoa eram os catecúmenos batizados “na água e no Espírito” (Jo. 3, 5). Desse modo, nasciam a vida da graça, vida espiritual em que desempenha papel preponderante o Espírito Santo.
Na Sagrada Escritura, o termo espírito “pneuma” designa o Espírito Santo, quer diretamente (escreve-se então com maiúscula), quer indiretamente, pois é ele que sobrenaturaliza o espírito do homem fazendo-o participar da plenitude de graças de que ele cumulou a alma de Jesus, ao realizar-se o mistério da Encarnação.
____Continua no próximo domingo
* Dividimos em duas partes a postagem, a fim de facilitar a leitura e compreensão.
** O primeiro Ciclo do Ano Litúrgico é o Ciclo do Natal, formado pelos períodos do Advento, Natal e Epifania.
(Fonte: livro O Espírito de Deus na Santa Liturgia, Dom Gaspar Lefèbvre, OSB, Livraria Editora Flamboyant, 1962, Tradução das Religiosas da Virgem de Petrópolis, Cap. III, pp. 46-52 – Texto revisto e atualizado, e destaques acrescentados)