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Tragada foi a morte na vitória

Hoje, 2 de Novembro, a Igreja comemora seus fiéis defuntos.

TRAGADA FOI A MORTE NA VITÓRIA

(imagem: IPCO-Instituto Plinio Corrêa de Oliveira)

«Eis que vou dizer-vos um mistério: todos ressuscitaremos, mas nem todos seremos mudados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta, porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis: nós seremos mudados. Porquanto é necessário que este corpo corruptível se revista da incorruptibilidade, e que este corpo mortal se revista da imortalidade. E, quando este corpo mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: tragada foi a morte na vitória».

Com estas palavras magníficas, São Paulo (I Cor, 15, 51-54) anuncia às gentes a boa nova da ressurreição da carne.

Nossa ilustração representa piedosas mulheres velando um cadáver numa pequena aldeia da católica Espanha. Estão consternadas pela dor da separação. Mas em seu sofrimento não há desespero, nem acidez, nem revolta. Uma atmosfera de serena conformidade, suave resignação e prece recolhida domina o ambiente. Trata-se de um verdadeiro lar cristão; e por todos os recantos do universo, onde quer que haja um lar cristão rico ou pobre, ferido pela morte, a atmosfera será sempre esta. Os verdadeiros filhos da Igreja, com efeito, creem na ressurreição da carne e sabem que pela Redenção do gênero humano “tragada foi a morte na vitória”.

Frente à morte, duas atitudes extremas

O espírito do mundo não entende estas coisas, e por isto toma em relação à morte atitudes de todo em todo diversas da que é própria do católico genuíno. Na raiz de tudo, o pavor, um pavor pânico, que à vista da sepultura convulsiona todo o ser, perturba toda a lucidez, destrói toda a coragem.

As misérias grandes e pequenas que este terror ocasiona são quase incontáveis: o receio de ir ao médico, e ali receber um diagnóstico ameaçador; o medo de fazer testamento; o horror de presenciar a agonia de alguém; o desagrado profundo de participar de funerais, de usar luto, e até de dar pêsames — são fenômenos nervosos confessados ou inconfessados, e tão generalizados que seria supérfluo insistir sobre eles.

Outro aspecto do terror diante da morte está nos cuidados exagerados com a saúde, no medo de envelhecer, na propensão de cada qual a esquecer sua própria idade. E assim se vai chegando até o momento inelutável. Quando por fim os dedos da morte pousam sobre alguém, e o vão levando indisfarçavelmente para a grande e última viagem, estas misérias ainda mais se acentuam. Quantas vezes o doente — contando com a cumplicidade de médicos e amigos — procura iludir-se até o fim sobre a gravidade do próprio estado. Quando já não há remédio senão reconhecer que os instantes supremos chegaram, o doente não tem coragem de olhar para a frente, para o ocaso que o vai envolvendo, para a escuridão que se aproxima, e prefere voltar-se para o passado: são as despedidas intermináveis, as reminiscências, os últimos presentes etc. Até que o desfecho final sobrevém, arrastando tudo em sua voragem.

Está consumado o fato, irrompeu a morte dentro do lar, cabe aos vivos tomar atitude perante ela. Os que tinham ao morto um afeto sincero ficam estarrecidos, estertoram, revoltam-se. São os prantos trágicos, os gritos lancinantes, as prostrações profundas e sem remédio. Outros, pelo contrário, fogem espavoridos, procurando esquecer o morto para fugir da lembrança que a morte traz.

São os espíritos que se perdem intencionalmente nos pormenores sociais dos funerais e do luto, que abreviam tanto quanto possível a presença do cadáver em casa, que “simplificam” de todos os modos as honras fúnebres, para que passem rápidas e sem deixar vestígio. Entre estas duas atitudes extremas, como é diferente a posição do católico!

(imagem: reprodução da internet)

A Igreja justifica nossa dor e a ela se associa

A Igreja nos ensina que a morte é um castigo imposto por Deus aos homens, em consequência do pecado original. É próprio do castigo produzir a aflição e a dor. Como Deus é infinitamente sábio e poderoso, e faz com perfeição todas as suas obras, este castigo instituído por Ele há de ser necessariamente capaz de produzir muita aflição e muita dor. Foi disto exemplo supremo a morte voluntária de nosso Salvador — sumamente aflitiva, inefavelmente dolorosa. Os instintos humanos recuam diante da aflição e da dor, e é natural que se aterrorizem diante da morte.

Diversos santos morreram inundados de consolações sobrenaturais, aceitando a morte com mais prazer do que outros aceitam honras ou riquezas. São verdadeiros milagres da graça, em que a unção sobrenatural é tão intensa que, por assim dizer, suspende os estertores da natureza. O comum dos homens não está neste caso, pois morrem com medo e com dor.

Se a morte faz sofrer, é legítimo que participem da dor os que amam o morto, e a Igreja sempre aprovou os costumes sociais tendentes a cercar a morte com as manifestações exteriores da dor. Por isto a liturgia para os defuntos assume todos os sinais da tristeza. Sendo Ela a mestra e a própria fonte da imortalidade, não desdenha de participar de nossas lágrimas e se revestir de nosso luto.

Os paramentos do sacerdote são pretos, preto é o tecido sobre o qual se dão as absolvições, e a música da liturgia dos defuntos canta com poderosa força de expressão a dor dos homens diante da morte. Os textos litúrgicos soam em uníssono com nossos gemidos. Como mestra, a Igreja justifica nossa dor; como mãe, a ela se associa. Por isto também incita a caridade dos fiéis a que se manifeste generosamente a propósito da morte.

Tradicionais costumes lutuosos

Velar os cadáveres, participar dos funerais, visitar as famílias enlutadas, comparecer à Missa em sufrágio da alma do morto — são atos que muito frequentemente se praticam hoje num espírito absolutamente mundano e naturalista. Não devem ser abolidos estes atos, que em si mesmos são excelentes e rigorosamente coerentes com o que a Igreja ensina a respeito da morte. O que deve ser abolido é esse espírito naturalista e mundano.

Nos séculos de civilização cristã, os costumes sociais, lentamente constituídos sob a bafejo do espírito católico, foram dando forma e expressão a todas estas ideias. Daí o luto, que os povos ocidentais usam com cor negra, por julgarem que esta cor serve para exprimir a dor, e de fato isso tem algum fundamento.

do que os costumes imponham um prazo determinado e determinada forma de luto para os viúvos, pais, filhos e demais parentes? Não seria muito mais expressivo deixar a duração do luto confiada ao sentimento de cada um? O consenso geral julgou de outro modo, nos séculos de civilização cristã, e com razão. Pois, se vivemos em sociedade, devemos satisfação de nossos atos ao próximo, e é justo manifestarmos a todos o pesar que legitimamente sentimos pela sua morte. Se não manifestamos este pesar, deixamos transparecer uma indiferença que redunda em desdouro para nós ou para o morto.

Por um tácito e geral consenso, é bom que se fixe para o luto um prazo mínimo. Terá sempre algo de arbitrário, mas deve ser de tal modo que, decorrido este prazo, ninguém tenha o receio de o deixar sem faltar com a decência. Claro está que os costumes impunham um prazo mínimo, mas não censuravam quem quisesse levar o luto além desse prazo. De qualquer forma, a compostura que o cristão deve guardar em todo o seu procedimento estava ressalvada.

Segundo nossos costumes tradicionais, os funerais não se revestiam apenas de sinais de dor, mas também de pompa. O mais pobre dos enterros tinha sempre algo de grandioso, até em sua própria singeleza. Nada mais razoável, pois muito vale um homem, por menos que ele seja na escala social. Criatura de Deus — mais ainda, filho de Deus pelo Batismo — ele foi criado para a glória imortal. Justo é que esta fundamental dignidade do homem, encoberta tantas vezes pelas vicissitudes da vida, seja ressaltada no momento da morte, isto é, no momento em que todos, grandes e pequenos, perdem tudo quanto possuem, e ficam reduzidos à mera condição essencial e inalienável de homens e de filhos da Igreja.

Sendo a morte um castigo de Deus, participa de algum modo da majestade do próprio Deus, está posta nos umbrais da eternidade. Esses umbrais são tão imensos, que à vista deles fica reduzido a pó tudo quanto é grandeza humana. Há algo de mais majestoso do que a morte? E algo de mais digno de ser assinalado com pompa?

Manifestar dor, mas com resignação e esperança

No século XIX, todo impregnado de romantismo, parecia haver algum comprazimento na dor. Por isto, sem grande dificuldade mantinham-se os costumes cristãos referentes à morte e aos funerais. Em muitos sentidos, até se exagerava. Na literatura, na música, na arte, no modo de viver do século XIX, a dor se exprimiu muitas vezes com uma nota de tragédia lancinante, desespero, revolta, que destoa do ensinamento da Igreja. A Igreja aprovou sempre que se chorasse a morte, mas como separação temporária que terminaria por um feliz reencontro na bem-aventurança eterna. Era uma dor sentida, sim, mas cheia de esperança, consolação, resignação, pois uma coisa é uma separação temporária, outra uma separação definitiva. No século XIX, um século sem Fé, viam-se as sombras da morte, mas não se queria ver para além dessas sombras os clarões da ressurreição e do Céu. Daí a nota de tragédia e desespero em matéria funerária, tão frequente então.

Ninguém consegue fitar detidamente a morte, quando não tem Fé. Foi o que sucedeu aos homens. Perdida no século XIX a Fé, no século XX começaram a desviar a face da morte. Daí uma tendência a restringir a solenidade, afastando-a de tudo quanto diga respeito à morte.

Tristes costumes modernos para esquecer a tristeza

Outrora os cadáveres eram velados em casa por 24 horas; hoje por vezes não se completam doze. Outrora revestia-se de panos negros toda a sala em que o cadáver ficava exposto; hoje este costume tende a desaparecer, e muitas famílias preferem até não fazer em casa a exposição do corpo. Outrora a dor tinha toda a liberdade de se manifestar na câmara ardente, dentro dos limites da dignidade e da compostura; hoje é de bom gosto sufocar em público, tanto quanto possível, a manifestação dos sentimentos, e tranca-se no quarto os que desejam chorar. Outrora enviavam-se flores, costume que chegou até certo exagero; hoje tende-se a abolir este modo de testemunhar saudades. Outrora ia-se ao enterro em traje de solenidade, que para os homens era o fraque; hoje serve qualquer traje comum. Outrora os carros funerários eram puxados a cavalo, costume que se conservou por muitos anos depois da introdução da automóvel na vida civil; mais tarde o uso do automóvel tornou-se exclusivo, e a forma deste foi evoluindo até tomar o aspecto de um caminhão de entrega de mercadoria. Outrora o luto era longo e muito visível; hoje é rápido e reduzido.

O ponto extremo desta transformação foi atingido num país em que — pelo menos em algumas regiões — os cadáveres são pintados como se estivessem vivos, enfeitados como para uma festa, e sentados em atitude normal no living da casa. Reúnem-se os amigos, alguém executa algumas músicas suaves, depois vão todos a um lindo jardim que serve de cemitério. O morto, envolto num pano de cor verde, alacremente verde, baixa à cova… quando não é cremado. E está terminado o funeral. De luto, nem se fale.

* * *

Por que fizemos esta longa digressão sobre a morte? Porque, em certo sentido, o que há de mais importante na vida é a morte. Enquanto os homens não tiverem uma atitude reta, equilibrada e cristã perante a morte, não serão capazes de ter uma atitude reta, cristã e equilibrada perante a vida.

_________Plinio Corrêa de Oliveira (Catolicismo nº 11, novembro/1951)

 

NOTA: Orações pelos Fiéis Defunto, CLIQUE AQUI

 

(Fonte: revista Catolicismo, nº 815, novembro/2018, pp. 28-34)

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