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REFLEXOS DE FÁTIMA

REFLEXOS DE FÁTIMA

“Senhor Padre, a Santíssima Virgem está muito triste, por ninguém fazer caso da Sua Mensagem, nem os bons nem os maus; os bons, porque continuam no seu caminho de bondade, mas sem fazer caso desta Mensagem; os maus, porque, não vendo que o castigo de Deus já paira sobre eles por causa dos seus pecados, continuam também no seu caminho de maldade, sem fazer caso desta Mensagem. Mas creia-me, senhor Padre, Deus vai castigar o mundo, e vai castigá-lo de uma maneira tremenda. O castigo do Céu está iminente.”

Entrevista com Pe. Fuentes (Dezembro de 1957)

PRIMEIRA PARTE: “A TREZE DE MAIO NA COVA DA IRIA…”

Quem parte de Lisboa rumo à Serra do Aire, encontra a pitoresca aldeia de Aljustrel, que há um século contava exatas vinte e seis casinhas. O seu relativo isolamento poupara a aldeia da laicização promovida pela recente República liberal. Por todo o país, padres eram presos, igrejas eram fechadas e religiosos deportados. “A perseguição não assolava Fátima tão fortemente, talvez porque a distância da capital nos fazia passar quase despercebidos”, escreveria Lúcia.

Apesar da austeridade em que viviam, que parece excessiva à moleza do nosso tempo, não eram exatamente pobres para os padrões da região: os pais da Lúcia tinham um patrimônio modesto, formado por terras e um pequeno rebanho. A proximidade das casas do vilarejo explica um pouco a amizade entre as famílias dos pastorinhos, estreitada ainda mais pelo parentesco: Ti Olímpia (1864-1956), mãe de Francisco e Jacinta, era a cunhada da mãe da Lúcia, até casar-se em segundas núpcias com Manuel Pedro Marto (1873-1957), conhecido como “o homem mais sério do lugar”.

Apesar de muito sisudo, Ti Marto foi seguramente o mais simpático dos coadjuvantes da história de Fátima. Ex-soldado, de porte ereto e olhar arguto, acreditou desde a primeira hora na veracidade dos fatos: “mentir, ai Jesus, os cachopos foram sempre tão contrários a isto”. Nós o vemos tomar o partido dos pastorinhos em todas as oportunidades e desde o começo.

Ele sempre teve grande simpatia pela sobrinha. Ao reencontrá-la em Maio de 1946, quando a Irmã Lúcia retornou ao lugar para identificar os locais das aparições do Anjo, travou com ela este simpático diálogo:

– Que bela cachopa tu estás!… Tu sim, que valeu a pena vires a este mundo! Lembras-te da minha Jacinta e do meu Francisco?

– Então, Tio, não me hei-de lembrar?!

– Se fossem vivos seriam como tu!…

– Seriam como eu!… Seriam melhores do que eu! Nosso Senhor desta vez enganou-se: devia ter deixado cá um deles, e deixou-me a mim!… 1

Era o exato oposto da mãe da Lúcia, Ti Maria Rosa, uma camponesa severa e corpulenta que não concebia que a filha pudesse estar a dizer a verdade. Para obrigá-la a desmentir-se, como dizia, não hesitava injuriá-la, castigá-la, cobri-la de pancadas com o cabo da vassoura. Algumas irmãs da Lúcia, sentindo-se abrigadas pelas opiniões da mãe, uniam-se a ela, debochando e rindo.

Um diálogo travado então com um tipo que insultava a pastorinha é revelador dos seus sentimentos:

– Então, ti Maria Rosa, que me diz das visões da sua filha?

– Não sei – respondeu. – Parece-me que não passa duma intrujona que traz meio mundo enganado.

– Não diga isso muito alto; senão, alguém é capaz de matá-la. Parece que há por aí quem Ihe tem boa vontade.

– Ah! Não me importa, contanto que a obriguem a confessar a verdade! Eu é que hei-de dizer sempre a verdade, seja contra meus filhos, seja contra quem for, nem que seja contra mim 2.

Nosso Senhor, contudo, dobraria essa resistência da mãe da Lúcia do modo mais admirável, pois, no grande Milagre do Sol, de 13 de outubro de 1917, aquela que mais duvidou, pôde assistir a tudo ajoelhada ao lado da filha.

Não devemos fazer uma opinião demasiado severa a respeito dos seus parentes, que formavam uma família simples e dedicada ao trabalho. A mãe de Lúcia era uma mulher de extrema honestidade e piedade, “uma santa”, no dizer do pároco de Fátima. Mãe de sete filhos, unia aos seus muitos afazeres domésticos o encargo de enfermeira de Aljustrel, e não havia ninguém que caísse doente, sem que ela largasse tudo para acorrer ao enfermo. Mesmo quando veio a gripe espanhola, apesar do risco real de contágio, não mudou em nada sua rotina, cuidando dos doentes como se fossem seus filhos. “O importante”, dizia a boa senhora, “é fazer o bem, ajudar os outros para que Deus também nos ajude”. Gabava-se de nunca ter perdido uma Missa, mesmo quando amamentava, e de já ter caminhado certa vez dez quilômetros para assistir a um ofício. “A grande virtude da minha mãe”, dirá Lúcia, “repousa sobre a rocha da lei de Deus e de sua Igreja”.

Quanto ao seu marido, Antônio dos Santos, pequeno agricultor e criador de ovelhas, conhecido pelo apelido de “abóbora”, nunca deixou que mendigo algum passasse por sua residência sem receber esmola, e tinha em casa uma porção de carne sempre pronta para o caso de algum necessitado aparecer. Muito amigo e próximo da filha, foi ele quem a ensinou a chamar a lua de “candeia de Nossa Senhora”, e as estrelas de “candeias dos anjos”. “Exemplos admiráveis de família cristã”, descreveria Lúcia.

Os pastorinhos

Foi nesse ambiente de Fé que cresceram os pastorinhos de Fátima, Lúcia, Francisco e Jacinta, que tinham, no momento das aparições da Santíssima Virgem, respectivamente 10, 9 e 7 anos. Suas personalidades, tão distintas, seriam marcadas de forma definitiva pelos acontecimentos.

Francisco Marto foi o consolador de Nosso Senhor, tão ofendido pelos nossos pecados. Muito manso e introspectivo, era essencialmente um contemplativo. “O desejo do Céu e a contemplação das coisas divinas”, escreveu o Pe. João de Marchi, “enchiam a transbordar o coraçãozito do Francisco”, a ponto de torná-lo estranho às coisas do mundo. Quando alguma criança roubava nas brincadeiras, dizia com indiferença: “Pensas que ganhaste tu? Pois sim! A mim isso não me importa”. Repetia o mesmo ainda quando outras crianças más apanhavam suas coisas, embora fosse suficientemente robusto para retomá-las à força. “Parece-me que, se houvesse crescido, o seu principal defeito seria o de não-te-rales”, declararia mais tarde a sua prima.

Os três Pastorinhos

Mas este desapego, diga-se, nunca se traduzia em respeito humano. Certa vez, ele se deparou com uma pobre mulher que fingia benzer terços e objetos religiosos, e que o convidou a ajudá-la. Francisco respondeu com severidade: – Eu não posso benzer e vossemecê também não! São só os Senhores Padres.

Outra vez, a sua mãe, a sra. Olímpia, disse-lhe para aproveitar a ausência da madrinha para levar as ovelhas a pastorear na sua propriedade. Francisco retrucou: – Ah, isso é que eu não faço! – ganhou logo uma bofetada pela resposta. O menino respondeu sem alterar a voz: – Então, é a minha mãe que me está a ensinar a roubar? – Quando Lúcia, depois das aparições, cedendo a rogos de familiares e vizinhos, aceitou participar da organização de uma festança, o menino interpelou-a: – E tu voltas a essas cozinhadas e brincadeiras?

A sua irmã, Jacinta Marto foi, segundo a sentença da Irmã Lúcia, “aquela a quem a Santíssima Virgem comunicou maior abundância de graça, conhecimento de Deus e da virtude”. Dizia-se que só se assemelhava ao Francisco pelos mesmos olhos castanho-escuros e os traços bem-feitos. Muito expansiva e sensível, a voluntariosa Jacinta era alegre como um passarinho. Sua espiritualidade era apostólica e, sobretudo após a visão do inferno, terá como missão a conversão dos pecadores: Da mihi animas, tolle coetera, poderia ser seu lema. Não media esforços para convertê-los, e jejuava e vigiava e fazia mortificações dignas de um cartuxo, a tal ponto que escreveu Garrigou-Lagrange: “Jacinta é uma das almas mais generosas do século XX”. Dentre os inúmeros sacrifícios que fez, impressiona a resignação e o abandono com que se submeteu a uma dolorosa cirurgia no final da sua vida, como veremos.

A mãe da Lúcia era a catequista de Aljustrel, e antes da primeira comunhão da filha, ensinou-lhe o que pedir ao receber Jesus no coração: “Sobretudo, pede a Nosso Senhor que te faça uma santa”. “Essas palavras”, dirá mais tarde a Lúcia, “se me gravaram tão indeléveis no coração, que foram as primeiras que disse a Nosso Senhor logo que o recebi”. Santa Lúcia de Fátima, santa pela obediência heróica, pela obscuridade e paciência da sua vida escondida – foi ela que ouviu primeiro de Nossa Senhora que iria para o Céu. Sua missão foi resumida por Jacinta pouco antes desta última ir para o hospital: “Tu ficas cá para dizeres que Deus quer estabelecer no mundo a devoção do Imaculado Coração de Maria. (…) que o Coração de Jesus quer que, a seu lado, se venere o Coração Imaculado de Maria”. Este será sempre seu ideal, e as aparições posteriores em Pontevedra (1925-26) e Tuy (1929) têm implicações consideráveis para nossas vidas.

1915 – O prelúdio

Ao completar sete anos, a mãe de Lúcia decidiu que era chegado o momento de a menina começar a trabalhar e a incumbiu da guarda das ovelhas da família. Antônio dos Santos e as demais filhas protestaram, julgando-a muito pequena para a tarefa. Mas Maria Rosa não era do mesmo sentimento: “É como todas”, disse, pondo fim à questão.

A nova responsabilidade não desagradava a Lúcia, que se sentia “uma menina grande”. Foi assim que, no dia combinado, partiu junto com três moças da aldeia vizinha, Maria Rosa, Maria Justino e Teresa Matias, que se ofereceram para acompanhá-la. O destino escolhido para as pastagens era um vale mais ermo conhecido pelo nome de Cova da Iria, aonde chegavam atravessando hortas e pomares. Costumavam passar ali boa parte do dia, quando não rumavam mais para o sul, para brincar num lugar chamado Valinhos, onde eram abundantes o capim para as ovelhas e a sombra para descansarem. Desse lugar, podia-se subir ao Cabeço, uma elevação mais escarpada, cercada por tojos e rosmaninhos, de onde se avistava uma espécie de gruta a que chamavam Loca do Cabeço.

Certo dia, por volta de uma da tarde, começaram a rezar o terço e uma delas chamou a atenção das demais para uma figura suspensa no ar, sobre o arvoredo – era a primeira de três manifestações que veria naquele ano com aquelas moças. A figura parecia-lhes uma estátua de neve atravessada pelos raios do sol, mas nunca disse palavra.

– Que é aquilo? – perguntaram-se as companheiras, meio assustadas.

– Não sei!

Lúcia guardou silêncio sobre o que vira, mas as moças trataram de espalhar o acontecido por toda a aldeia. A mãe de Lúcia, desgostosa, perguntou à filha:

– Ouve lá: dizem que viste para aí não sei o quê. O que é que tu viste?

– Não sei! – respondeu Lúcia.

E como não sabia explicar-se, acrescentou:

– Parecia uma pessoa embrulhada num lençol. Não se lhe conheciam olhos nem mãos.

– Tolices de crianças! – sentenciou Ti Maria Rosa.

1916 – As aparições do anjo

Havia algo de misterioso na forte amizade que Jacinta sentia pela prima: “Não sei por quê, a Jacinta, com seu irmãozinho Francisco, tinham por mim uma predileção especial e buscavam-me, quase sempre, para brincar”, escreveu Lúcia. De modo que, quando souberam que a prima começaria a pastorear, e não poderia portanto tornar a brincar com eles, correram inconformados a pedir à mãe autorização para acompanhá-la, mas isso lhes foi negado. Nesse tempo, portanto, Lúcia só os encontrava à noitinha, quando retornava do pasto.

Contudo, aos dois pequenitos custava-lhes conformar-se com a ausência da sua antiga companheira. Por isso, renovavam continuamente as instâncias junto de sua mãe, para que pudessem guardar o seu rebanho. Ti Olímpia, talvez para ver-se livre de tanta insistência, acabou consentindo, e foi assim que, no ano de 1916, Lúcia já não pastoreava com as antigas companheiras, mas com os primos.

Anjo da Guarda de Portugal

Jacinta por vezes metia-se no meio do rebanho:

– Jacinta – perguntava-lhe Lúcia – para que vais aí, no meio das ovelhas?

– Para fazer como Nosso Senhor, que, naquele santinho que me deram, também está assim, no meio de muitas e com uma ao colo.

Foi nesse ano de 1916, espaçado pelas estações do ano (primavera, verão e outono), que Lúcia tornou a ver o anjo, que dessa vez comunica-se com ela. É pouco o que diz, mas que profundidade!

A primeira aparição ocorreu na Loca do Cabeço. O anjo disse-lhes: “Não temais! Sou o Anjo da Paz. Orai comigo”. É digno de nota que o anjo tenha se apresentado assim, pois Portugal acabara de entrar oficialmente na Grande Guerra e o país, governado pelos maçons, vivia intensa perseguição religiosa.

O Anjo da Paz prostrou-se e ensinou aos pastorinhos uma oração que consiste, na primeira parte, num ato de fé, esperança e caridade (“Meu Deus! Eu creio, adoro, espero e amo-vos”), e, na segunda, num ato de reparação (“Peço-vos perdão para os que não crêem, não adoram, não esperam e não vos amam”).

Orai assim. Os Corações de Jesus e Maria estão atentos à voz das vossas súplicas.

Dito isso, desapareceu, deixando os pastorinhos a tal ponto subjugados e imersos no sobrenatural, que mal conseguiam falar: “A presença de Deus sentia-se tão intensa e íntima que nem mesmo entre nós nos atrevíamos a falar” 3, escreveu Lúcia.

Note-se que o anjo refere-se aos “Corações de Jesus e Maria”. Será assim nas três aparições, mas sempre obedecendo a uma gradação: aqui alude aos “Corações de Jesus e Maria”; na segunda aparição falará dos “Corações Santíssimos de Jesus e Maria” e, na terceira, do “Santíssimo Coração [de Jesus] e do Coração Imaculado de Maria”. Essa gradação tem um valor pedagógico e aponta para aquilo que escreveu o Cardeal Cerejeira: “Fátima será para o culto do Coração Imaculado de Maria o que foi Paray-le-Monial para o culto do Coração de Jesus. Fátima, de certo modo, é a continuação, ou melhor, a conclusão de Paray-le-Monial: Fátima reúne estes dois Corações que Deus mesmo uniu na obra divina da Redenção.”

A segunda aparição do anjo ocorreu no verão do mesmo ano. Por conta do calor, as crianças fizeram a sesta em casa e foram brincar no poço do Arneiro, uns 50 metros da casa da Lúcia. Foi aí que o anjo lhes apareceu:

– Que fazeis? Orai, orai muito. Os Corações Santíssimos de Jesus e Maria têm sobre vós desígnios de misericórdia. Oferecei constantemente, ao Altíssimo, orações e sacrifícios.

– Como nos havemos de sacrificar? – perguntou Lúcia.

– De tudo o que puderdes, oferecei um sacrifício em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores. Atraí, assim, sobre a vossa Pátria, a paz. Eu sou o Anjo da sua guarda, o Anjo de Portugal. Sobretudo, aceitai e suportai com submissão o sofrimento que o Senhor vos envia.

Nota-se outra gradação pedagógica na fala do anjo. Na primeira aparição, pediu um ato de reparação, nesta pede sacrifícios.

A terceira aparição do anjo ocorreu no outono. Foi aqui que ele deu a comunhão aos pastorinhos. Antes, porém, ensinou aos pastorinhos uma oração de reparação a Nosso Senhor:

– Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, adoro-Vos profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores.

O anjo deu a comunhão aos serranitos pronunciando as palavras:

– Tomai e bebei o Corpo e Sangue de Jesus Cristo, horrivelmente ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e consolai o vosso Deus.

Repetiu ainda mais uma vez a oração acima, e desapareceu.

Mais tarde, Lúcia seria interrogada pelo Bispo de Viseu, D. José Pedro da Silva:

– Quando a Irmã comungou da mão do Anjo, sentiu na boca o contacto físico das Sagradas Espécies, tal como hoje quando comunga?

– Sim.

– Lembra-se de ter engolido a Sagrada Hóstia?

– Sim.

Eis aqui uma primeira prova de que, em Fátima, não se tratava de umas “visões imaginativas”, como quiseram alguns. Há outras provas. Por exemplo, quando os pastorinhos viam Nossa Senhora, por vezes baixavam os olhos, o que logo chamou a atenção de alguns. Eles explicaram que a luz da Virgem, de tão forte, cegava.

1917 – As aparições de Nossa Senhora

Em Maio de 1917 começaram as aparições de Nossa Senhora. Assim como o anjo, ela era toda de luz, e brilhava mais do que o sol, “luz sobre luz”, esclareceria a Lúcia. A Virgem aparecia-lhes de pé sobre a copa duma carrasqueira, árvore de folhas brilhosas e cheias de espinhos, com cerca de um metro de altura. Os pastorinhos ficavam bem próximos, dentro da luz que dela emanava. Embora tudo nela exprimisse a paz celestial, o seu olhar era triste – ela não sorriu nenhuma vez em todas as aparições – embora tomado de solicitude maternal; sua voz era fina, doce e melodiosa. Quanto às crianças, havia uma curiosa gradação: Francisco apenas via; Jacinta, via e ouvia; Lúcia, via, ouvia e falava com a Virgem4. As aparições duravam alguns minutos, menos do que o tempo de se rezar um terço.

As crianças estavam a brincar antes da primeira aparição; construíam uma casinha com pequenas pedras, quando, subitamente, relampeou e elas, temendo chuva, resolveram voltar para casa. Novo relampear e, um pouco mais adiante, deram com a Virgem.

– Não tenhais medo. Eu não vos faço mal.

– De onde é Vossemecê? – perguntou-lhe a Lúcia.

– Sou do Céu.

Aqui, observa um autor, nota-se a precisão e a beleza da resposta de Nossa Senhora. Ela não diz que “veio” do Céu, como talvez responderia algum outro santo. Ela diz, ao contrário, “Sou do Céu” – isso é mais exato, pois trata-se da Imaculada Conceição, onde o pecado jamais teve morada, nem por um instante sequer.

– E que é que Vossemecê me quer?

Nossa Senhora então pede que voltem para lá no dia 13 durante seis meses seguidos, que no final dirá quem é e o que quer. E afirma que virá ainda uma sétima vez.

Segue o diálogo conhecido. Lúcia quer saber se vai para o Céu. “Sim, vais”. Resposta que lhe encheu de uma alegria indescritível. E a Jacinta? “Também”. O Francisco? “Também, mas tem que rezar muitos terços.”5

– A Maria das Neves já está no Céu?

– Sim, está.

– E a Amélia?

– Estará no purgatório até o fim do mundo.

Ao ler isso, nossa atenção se volta naturalmente para o triste fim da Amélia – moça que morrera poucos meses antes e que, segundo os pesquisadores, pecava contra a pureza. Mas é preciso reconhecer que a sorte de Maria das Neves é muito consoladora: Ela está no Céu! Não foi nenhuma grande santa, nenhuma grande penitente, apenas uma boa católica – e está no Céu.

– Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?

– Sim, queremos – respondeu a Lúcia em nome dos três.

Desde aquele momento, comenta o Pe. João de Marchi, os três pastorinhos começaram a ser heróis.

– Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.

Em seguida, Nossa Senhora comunicou-lhe uma misteriosa luz, que era Deus. Finalmente, despediu-se com as palavras:

– Rezem o terço todos os dias 6, para alcançarem a paz para o mundo e o fim da guerra.

Nossa Senhora se foi. Voltou as costas para os pastorinhos e foi-se embora em direção ao nascente, desaparecendo pouco a pouco.

Os serranitos ficaram novamente imersos no sobrenatural, porém, desta vez, não sentiam o aniquilamento físico que a aparição do anjo lhes causava. Ao contrário, sentiam-se exultantes, eufóricos, e não lhes foi difícil contar imediatamente ao Francisco o que ouviram. Este, cruzando as mãos sobre o peito, exclamou contente:

– Ó minha Nossa Senhora, terços rezo todos quantos Vós quiserdes. – Deve ter cumprido muito bem a exigência que lhe fora feita, porque já na segunda aparição Nossa Senhora lhe promete levar logo para o Céu, como veremos.

Passaram assim o resto da tarde, saboreando tudo que lhes acontecera, recordando a beleza da branca Senhora que se dignara aparecer-lhes:

– Ai, que Senhora tão bonita! – exclamava a Jacinta, para daqui a pouco tornar a exclamar:

– Ai, que bonita Senhora! – suspirava de novo a Jacinta, o rosto iluminado de alegria.

– Estou mesmo a ver – dizia Lúcia – ainda vais a dizer a alguém.

– Não, digo, não – respondia Jacinta – está descansada.

Eles voltaram a Aljustrel, Jacinta sempre repetindo “Ai, tão bonita!”. Lúcia, antes de despedir-se da prima, ainda chamou-a uma vez:

– Psiu!… mesmo com a mãe.

– Pois sim! – assegurava-a novamente a Jacinta.

O Sr. Marto e a Sra. Olímpia ainda não haviam voltado do mercado, aonde foram comprar uma porca para a engorda. A Jacinta os esperava inquieta. Mal os viu, saiu correndo toda alvoroçada ao encontro deles para publicar a sua alegria:

– Ó mãe, vi hoje Nossa Senhora na Cova da Iria.

Certa de que era alguma brincadeira de criança, a mãe fez pouco caso: “És bem doidinha!” – disse, e foi direto para os seus afazeres. Isso se passou à porta de casa. Eles entraram e a Jacinta lhe disse:

– Minha mãe, vou rezar o terço com o Francisco, que foi o que Nossa Senhora mandou que nós fizéssemos. – E lá se foram rezar.

Na hora do jantar, contudo, junto à lareira, na presença de toda a família e também do pai da Lúcia, que lá estava por acaso, a mãe perguntou à filha:

– Ó, Jacinta, conta lá como foi isso de Nossa Senhora na Cova da Iria.

Era tudo o que Jacinta queria ouvir! A menina começou a falar com entusiasmo:

– Era uma Senhora tão linda, tão bonita!… Tinha um vestido branco, e um cordão de ouro ao pescoço até ao peito… Ai, que bonito!… Tinha as mãos juntas, assim – e a pequena levantava-se do banquinho, juntava as mãos à altura do peito para imitar a visão.

– Entre os dedos tinha as contas. Ai, que lindo tercinho ela tinha… todo de ouro, brilhante, como as estrelas da noite, e um crucifixo que luzia… que luzia… Ai, que linda Senhora!… Falou muito com a Lúcia, mas nunca falou comigo, nem com o Francisco… Eu ouvia tudo o que elas diziam… Ó mãe, é preciso rezar o terço todos os dias… A Senhora disse isso à Lúcia. E disse também que nos levava os três para o Céu, a Lúcia, o Francisco e mais eu… E mais outras coisas disse que eu não sei mas que a Lúcia sabe… Quando Ela entrou pelo Céu dentro, parece que as portas se fecharam com tanta pressa que até os pés iam ficando de fora entalados… Era tão lindo o Céu… Havia lá tantas rosas albardeiras! 7

Os adultos perguntaram ao Francisco se isso tudo era verdade. Ele confirmou a história e a notícia rapidamente se espalhou. O calvário de Lúcia apenas começava.

A segunda aparição (13 de junho de 1917)

A segunda aparição ocorreu no dia 13 de junho, na mesma hora e local. O rumor fez com que umas cinqüenta pessoas estivessem presentes na Cova da Iria. Eles não viram nem ouviram Nossa Senhora, mas notaram uns fenômenos estranhos no momento da aparição: os galhos da azinheira se vergaram repentinamente sob o peso de algo que não percebiam. Alguns puderam ouvir algo que não distinguiam, mas que se assemelhava a um zumbido de abelha. Foi suficiente para que retornassem entusiasmados com o pouco que viram, e dessem publicidade ainda maior aos fatos.

Nesta ocasião, Nossa Senhora pediu aos pastorinhos que voltassem no mês seguinte, rezassem o terço e aprendessem a ler. Disse que os primos iriam logo para o Céu, mas não a Lúcia, que haveria de ficar aqui para propagar a devoção ao seu Imaculado Coração, e acrescentou: “A quem a abraçar, prometo a salvação”. Palavras importantes que deveriam ficar gravadas em nossos corações.

– Fico cá sozinha? – perguntou Lúcia.

– Não, filha. E tu sofres muito? – respondeu Nossa Senhora, para concluir com palavras que, segundo o sentimento de Lúcia, não se destinavam apenas a ela. – Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus 8.

Finalmente, Nossa Senhora abriu as mãos, comunicando o reflexo de uma luz imensa na qual os pastorinhos puderam ver o Imaculado Coração de Maria cravejado de espinhos. Anos depois, interrogada por Dom José Pedro da Silva:

– Poderá, de algum modo, descrever a luz que Nossa Senhora lhe “meteu no peito”?

– Não posso: porque não conheço palavras que a descrevam.

Uma observação interessante foi feita pelo Pe. Chautard. A representação clássica do Coração doloroso de Maria apresenta-o traspassado por uma espada: é nova a imagem do seu coração coroado de espinhos. Indica talvez que a dor que Nossa Senhora mais ressente é a recusa do reinado social de Cristo, inaugurado pelo Liberalismo, após a Revolução em França, e que culminaria naquele mesmo ano no Comunismo, com a Revolução bolchevique.

O segredo (13 de julho de 1917)

A terceira aparição é a mais importante, pois foi a do grande segredo. Costuma-se falar em Terceiro Segredo de Fátima, mas trata-se na verdade de um único segredo em três partes, comunicado de uma só vez neste dia. Segundo o Irmão François de Marie des Anges, as três partes do Segredo referem-se: a primeira às almas; a segunda às nações; a terceira, à Igreja.

As semanas que precederam o grande dia 13 de julho foram particularmente sofridas para Lúcia, pois sua mãe redobrara os esforços para fazer com que a filha “se desmentisse”, levando-a para tanto até o pároco de Fátima.

– Não me rales mais! Agora diz ao Senhor Prior que mentiste, para que ele possa, no domingo, dizer na Igreja que foi mentira e assim acabar tudo. Isto tem lá jeito! Toda a gente a correr para a Cova de Iria, a rezar diante duma carrasqueira!

O padre recebeu-a com muita amabilidade e, após interrogar a menina, encerrou dizendo:

– Não me parece uma revelação do Céu. Quando se dão estas coisas, por ordinário, Nosso Senhor manda essas almas a quem se comunica, dar conta do que se passa a seus confessores ou párocos e esta, ao contrário, retrai-se quanto pode. Isto também pode ser um engano do demônio. Vamos a ver.

Influenciada pela dupla autoridade do pároco e da mãe, e percebendo que sua vida virara ao avesso desde o início das aparições, Lúcia concluiu que talvez estivesse mesmo sendo vítima de um engano diabólico e decidiu não tornar à Cova da Iria.

Contudo, no dia 13 de julho, ao aproximar-se a hora em que deveria partir, sentiu-se impelida por algo que não lhe era fácil resistir, e pôs-se a caminho, passando antes pela casa dos seus tios a ver se Francisco e Jacinta ainda estavam lá. Encontrou-os chorando.

– Então vocês não vão? – perguntou-lhes

– Sem ti não nos atrevemos a ir. Anda, vem.

Os três pastorinhos partiram contentes rumo à Cova da Iria, e corriam tanto, que a gente pedia que reduzissem o passo.

Apesar do sol escaldante, havia cerca de 4 mil pessoas ao redor da azinheira. Dessa feita Ti Marto resolveu ir e ficou rente à sua Jacinta. Na sua linguagem simples, narrou o que viu:

“A Lúcia, ajoelhada um pouco mais à frente, passava as contas e todos respondiam em voz alta. Acabado o terço, levanta-se tão rápida que aquilo não era força dela. Olha assim para o nascente e grita: ‘Fechem os chapéus, fechem os chapéus, que já aí vem Nossa Senhora’. Eu, por mais que olhasse, nada via. Começando então a afirmar-me, vi assim a modo uma nuvenzinha acinzentada que pairava sobre a azinheira. O sol enturviscou-se e começou a correr uma aragem tão fresquinha que consolava. Nem parecia estarmos no pino do Verão. O povo estava mudo que até metia impressão. E então comecei a ouvir um rumor, uma zoada, assim a modo como um moscardo dentro dum cântaro vazio. Mas de palavras, nada!” 9

Ao ver Nossa Senhora, Lúcia entrou em êxtase e emudeceu. Jacinta despertou-a:

– Anda, fala-Lhe, que Nossa Senhora já está a falar.

– Vossemecê o que me quer? – perguntou Lúcia.

Os presentes não ouviam as respostas. As crianças, inteiramente alheias à multidão silenciosa que as rodeava, adquiriam nesses momentos um não-sei-quê de angelical, os rostos cresciam em alvura e ganhavam uma beleza que não é deste mundo. Crisparam-se subitamente os pastorinhos de horror, e puseram-se a gritar:

– Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora!

Era o início do grande Segredo. A Virgem mostrou-lhes o inferno, e os três viram um mar de fogo onde flutuavam sem peso nem equilíbrio os condenados ao lado de demônios de formas horríveis e asquerosas, como animais desconhecidos. “Creio que teríamos morrido de susto e pavor”, escreveu a Lúcia. Os pastorinhos não viram o inferno como que ao longe, mas desde muito perto; podiam ouvir a grita e o desespero dos condenados. Muitos anos mais tarde, quando alguém perguntava a Irmã Lúcia sobre o que viu nesse dia, a sua fisionomia imediatamente exprimira tamanho horror, que não era preciso mais nada para que o interlocutor acreditasse na realidade da visão.

Também a Jacinta ficaria profundamente marcada com o que viu. Desde esse dia, costumava dizer:

– O inferno!, o inferno!, que pena eu tenho das almas que vão para o inferno! E as pessoas lá vivas a arder como a lenha no fogo!

Outras vezes dizia:

– Francisco, Francisco, vocês estão a rezar comigo? É preciso rezar muito, para livrar as almas do inferno. Vão para lá tantas!, tantas!

Ora, nesse mesmo dia, após a espantosa visão, Nossa Senhora falou aos pastorinhos:

– Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre10. Para a impedir virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz. Em Portugal conservar-se-á sempre o dogma da Fé, etc. 11

A quarta aparição (19 de agosto de 1917)

A quarta aparição foi precedida de grandes provações: os três foram sequestrados pelo Administrador de Ourém, Artur Oliveira Santos, um maçom apelidado de “latoeiro”, que os levou para a Administração e os lançou na prisão para forçá-los a revelar o Segredo. Os demais presos diziam-lhes:

– Mas vocês, digam ao Senhor Administrador lá esse segredo. Que Ihes importa que essa Senhora não queira?

– Isso não! – respondia a Jacinta com vivacidade. – Antes quero morrer.

Quando a Jacinta chorava na prisão com pena de não tornar a ver a mãe, Francisco a consolava:

– A mãe, se a não tornarmos a ver, paciência, oferecemos pela conversão dos pecadores. O pior é se Nossa Senhora não volta mais! Isso é o que mais me custa! Mas também o ofereço pelos pecadores.

O Administrador trouxe um médico para examiná-los, na esperança de obter um diagnóstico que os declarasse desequilibrados, mas em vão. No dia seguinte, conduziu-os novamente para sua própria casa, onde, numa tentativa final, ameaçou de morte um a um, dizendo que os havia de queimar em óleo fervente. Todos resistiram bravamente e ao latoeiro só restou soltá-los.

No dia 13 de agosto, estando os pastorinhos presos, dez a vinte mil pessoas foram à Cova da Iria e, na hora prevista, novos fenômenos ocorreram: deu-se uma queda impressionante da luminosidade e umas nuvenzinhas se formaram perto da Carrasqueira e se ergueram por uns 6 metros até se desfazerem. O povo percebeu que havia ali qualquer coisa de sobrenatural, e voltou-se furioso contra o Administrador que sequestrara os pastorinhos, e mesmo contra o Sr. Prior, que julgavam ser seu cúmplice. Tudo terminaria mal, não fosse pela intervenção de Ti Marto: “Sosseguem, rapazes! Não façam mal a ninguém. Quem merece castigo recebe-lo-á. Tudo isso é por desígnio do Alto.”

Para provar sua inocência, o pároco de Fátima escreveu um texto sobre os fatos e o fez publicar em diversos jornais de Lisboa, dando aos acontecimentos uma repercussão em escala nacional.

A quarta aparição da Virgem, contudo, ocorreu no dia 19 de agosto nos Valinhos. Depois da aparição, os pastorinhos colheram uns raminhos da azinheira que tocaram nos vestidos da nívea Senhora, e correram muito depressa a levá-los para casa. A Jacinta mesma os mostrou para a mãe da Lúcia:

– Olhe, tia, Nossa Senhora colocou um pé neste raminho e outro neste.

– Dá-me cá! Deixa ver!

A Jacinta deu-lho e Ti Maria Rosa levou-o ao nariz.

– Mas a que cheira isto? – e continuava a cheirar. – Não é perfume… não é incenso… sabonete… cheiro de rosa também não é, nem de nada que eu conheça… Mas é um cheiro bom!12

Depois desse dia, apesar de sempre continuar a duvidar das aparições, proibiu as filhas de debocharem da Lúcia.

A quinta aparição

A mais breve das aparições ocorreu no dia 13 de setembro de 1917, quando estiveram presentes em torno de 25 mil pessoas. O Pe. Manuel Nunes Formigão partiu numa charrete com um grupo de peregrinos da Benedita, ansiosos para ver os fenômenos que se produziam todo dia 13 na Cova da Iria:

“À hora aprazada subimos para o carro e partimos. Durante a jornada comovi-me imenso e por mais duma vez me assomaram as lágrimas aos olhos ao constatar a Fé e a piedade ardente de tantos milhares de romeiros.

“Os caminhos e atalhos iam cheios de gente. Não havia carreiro, por mais pequeno que fosse, que não trouxesse pessoas à estrada. Era uma peregrinação verdadeiramente digna deste nome, cuja vista, só por si, fazia chorar de comoção. Nunca me fora dado presenciar em toda a minha vida uma tão grande e tão empolgante manifestação de Fé. Não se via nem se ouvia coisa alguma que traduzisse o mais imperceptível sentimento de leviandade ou mesmo um propósito de divertimento inocente.”

Passaram em Aljustrel tão logo chegaram para fotografar e conversar com os videntes:

“Foi essa a cena que mais me impressionou. Fiquei positivamente encantado. Aquela simplicidade angélica e aquela absoluta despreocupação, que elas manifestavam, não pode mentir. Não têm o acanhamento próprio das crianças rudes dos campos e das serras na presença de pessoas desconhecidas. Tanto se lhes dá falar com uma pessoa estranha como com muitas. As respostas que dão são sempre as mesmas. Parecem adultos na maneira de se exprimir.”

Outro sacerdote presente na hora da aparição de setembro foi o Cônego José Galamba de Oliveira, que chegou a Fátima acompanhado de um grupo de seminaristas:

“Não dei por nada junto do local mas, após a aparição, não posso indicar o momento preciso, olho para o Céu, talvez porque alguém a isso me convidasse, e vejo à distância aparente de um metro do Sol um como globo luminoso que em breve começou a descer em direção ao poente e, da linha do horizonte, voltou a subir de novo em direção ao Sol.

“Apoderou-se de nós uma justificada comoção. Rezávamos de rijo a pedir não sei o quê. Todos os presentes puderam ver o mesmo globo à exceção de um meu condiscípulo, hoje sacerdote também, natural de Torres Novas. Tomei-o pelo braço para lhe mostrar mas nessa altura perdi o dito globo de vista sem que ele lograsse notá-lo, o que o levou a dizer entre lágrimas: ‘Por que será que eu não vejo? Quem sabe se estou em pecado mortal?’

“Antes ou depois, mas decerto no mesmo dia, começamos eu e outros, não sei se todos os presentes, a ver uma queda como de pétalas de rosas ou flores de neve que vinham do alto e desapareciam um pouco acima das nossas cabeças, sem que as pudéssemos tocar.

“Eu não vi mais nada. Mas isso bastou para nos encher de consolação e partimos com a certeza íntima, uma como intuição, de que estava ali o dedo de Deus.”

O Milagre de Fátima (Foto: Varievo.com)

 

Nossa Senhora pediu mais uma vez o terço diário e prometeu fazer um milagre, para que todos pudessem crer, no dia 13 de Outubro.

O grande milagre

“O clero do lugar e das redondezas mantém uma atitude de prudente reserva, ao menos na aparência, em relação aos fatos. É o costume da Igreja. Ela proclama abertamente que, em tais circunstâncias, é lícito duvidar. Mas, secretamente, rejubila-se com a grande afluência de peregrinos, que desde o mês de maio aumentou cada vez mais.

“Existem até pessoas que sonham com uma igreja grande e magnífica, sempre cheia; nas proximidades, hotéis, esplendidamente instalados com os mais requintados confortos modernos; lojas imensas, perfeitamente apetrechadas com mil e um objetos de piedade e lembranças de Nossa Senhora de Fátima; estradas de ferro que conduzam convenientemente os peregrinos até ao futuro santuário milagroso, em vez desses ônibus que são um desrespeito à massa dos fiéis e dos curiosos…” 13

Essas linhas odiosas, anteriores aos acontecimentos do 13 de outubro, foram escritas pelo jornalista Avelino de Almeida, um maçom de quatro costados, para o jornal “O Século”, principal diário português.

Sem acreditar na realidade dos fenômenos, foi como jornalista que se uniu aos milhares de peregrinos que se dirigiam então a Fátima para presenciar um milagre com dia, local e hora marcados para acontecer. Calcula-se em torno de 70 mil o número dos que foram à Cova da Iria, sem se importar com a chuva torrencial que então caía.

Em Aljustrel, a tensão chegou ao cúmulo. “Tinha-se espalhado o boato que as autoridades haviam decidido fazer explodir uma bomba junto de nós, no momento da aparição”, recorda a Ir. Lúcia. Sua família temia pelo que lhes poderia suceder se não houvesse o tal milagre, e assim, às vésperas do dia, Ti Maria Rosa procurou a filha:

– Ó, Lúcia, é melhor irmo-nos confessar. Dizem que havemos de morrer amanhã na Cova da Iria… Se a Senhora não faz o milagre, o povo mata-nos. Portanto é melhor que nos confessemos, a fim de estarmos preparados para a morte.

A filha não demonstrava medo algum:

– Se a mãe quer confessar-se, eu vou também; mas não por esse motivo. Não tenho medo de que nos matem. Estou certíssima que a Senhora há-de fazer amanhã tudo o que prometeu 14.

Um vizinho procurou o pai do Francisco e da Jacinta:

– Ó, tio Marto, é melhor não ir… Porque poderia calhar ser maltratado. Os pequenos, não; são crianças e ninguém lhes vai fazer mal. Mas você é que está em risco de ser enxovalhado.

O caminho até a Cova da Iria estava apinhado de gente, e não foi sem dificuldade que os pequenos venceram a distância que separava a sua casa materna da Cova da Iria. Lúcia vinha de mãos dadas com o pai, mas a mãe também a acompanhava: “Se a minha filha vai morrer, quero morrer ao seu lado!”, declarou.

Entre os circunstantes, percebiam-se alguns homens armados com varapaus que pareciam inclinados a iniciar uma confusão na primeira oportunidade. Muitos havia que lá foram movidos tão-somente pela curiosidade, como era o caso do Sr. Alfredo da Silva Santos, que poucos dias antes ouvira de um amigo numa cafeteria em Lisboa:

– Lá em casa, depois de amanhã, vai tudo a Fátima. Parece que tem havido por ali qualquer coisa de extraordinário e está tudo cheio de curiosidade de ver o que há ao certo.

– Pois também vou! – respondeu. O relato do que viu, como veremos adiante, é espetacular.

Apesar da chuva, toda a multidão rezava o terço, estando os serranitos ajoelhados diante da azinheira. Por volta das doze horas, houve um princípio de confusão: um padre aproximou-se impaciente dos pequenos e começou a empurrá-los, querendo enxotá-los para longe: “Fora com tudo isto! É tudo uma ilusão!” Lúcia, quase a chorar, recusou-se a sair: “Veio das outras vezes e agora também há de vir!”. Murmúrios e queixas se ouviam, quando finalmente a Lúcia gritou: “Já vi o relâmpago”.

Naquele momento exato, a chuva cessou. O rosto da pequena transformou-se, adquirindo uma beleza indizível. Ela sorria enquanto, de uma ponta a outra do vale, reinava o silêncio mais absoluto:

– Que é que Vossemecê me quer?

– Quero dizer-te que façam aqui uma capela em Minha honra, que sou a Senhora do Rosário, que continuem sempre a rezar o terço todos os dias. A guerra vai acabar e os militares voltarão em breve para suas casas.

– Eu tinha muitas coisas para Lhe pedir: se curava uns doentes e se convertia uns pecadores, etc.

– Uns, sim; outros, não. É preciso que se emendem, que peçam perdão dos seus pecados.

E tomando um aspecto mais triste, Nossa Senhora encerrou as aparições na Cova da Iria com esta palavra que é como que um resumo de toda a mensagem de Fátima:

– Não ofendam mais a Deus Nosso Senhor, que já está muito ofendido.

Abrindo as mãos, fê-las refletir no sol. A Lúcia, levada por um movimento interior, gritou a todos que olhassem para o sol. Deu-se então o grande milagre:

“Não posso então explicar o que se deu”, narrou o Sr. Alfredo da Silva Santos, que veio de Lisboa. “O sol começou a bailar e a certa altura pareceu deslocar-se do firmamento e, em rodas de fogo, precipitar-se sobre nós. Minha mulher – estávamos casados havia pouco – desmaiou e eu não tive coragem para a amparar. Foi o meu cunhado João Vassalo que a susteve nos braços. Caí de joelhos esquecido de tudo. E quando me levantei não sei o que disse; acho que me pus a gritar como os outros.” 15

Aos olhos da multidão, o sol adquiriu movimentos nunca antes vistos. Primeiro, deixou-se ver por longos minutos sem queimar a vista. Em seguida, descreveu no firmamento uma tripla dança, rodopiando ao redor do próprio eixo como um pneu de bicicleta e bailando para lá e para cá. Finalmente, o momento mais assustador: o sol se desprendeu do céu ameaçando cair sobre o povo aterrorizado:

“A gente gritava: ‘Ai, Jesus, que aqui morremos todos!, Ai Jesus, que aqui morremos todos!…’

“Outros bradavam: ‘Nossa Senhora nos valha!’, e rezavam o ato de contrição.

“Houve até uma senhora que fez confissão geral e dizia em altas vozes: ‘Eu fiz isto, aquilo e aqueloutro!’”

O fenômeno foi testemunhado não apenas pelas multidões em Fátima, mas mesmo em outras aldeias, como São Pedro de Muel (40 km de distância), ou Alburitel (18 km). O Padre Inácio Lourenço relata o que viu nesse dia:

«Tinha apenas 9 anos e freqüentava a escola de primeiras letras da minha aldeia (18 ou 19 quilômetros da Fátima).

…Era meio-dia mais ou menos quando fomos sobressaltados pelos gritos e exclamações de alguns homens e mulheres que passavam na rua diante da nossa escola. A professora, muito boa e piedosa, mas facilmente impressionável e excessivamente tímida, foi a primeira a correr para a rua, sem poder impedir que todas as crianças corressem atrás dela.

Na rua o povo chorava e gritava, apontando para o sol, sem atender às perguntas que, aflitíssima, lhe fazia a nossa professora.

Era o grande Milagre, que se via distintissimamente do alto do monte, onde fica situada a minha terra: era o Milagre do sol com todos os seus fenômenos extraordinários.

Sinto-me incapaz de o descrever, como o vi e senti então. Eu olhava fixamente para o sol, e parecia-me pálido, de modo que não cegava os olhos; era como um globo de neve a rodar sobre si mesmo.

Depois, de repente, pareceu que baixava em ziguezague, ameaçando cair sobre a terra. Aterrado, corri a meter-me no meio da gente. Todos choravam, aguardando de um instante para o outro o fim do mundo.

Junto de nós estava um incrédulo, sem religião, que tinha passado a manhã a mofar dos simplórios que faziam toda aquela caminhada a Fátima para irem ver uma rapariga. Olhei para ele: estava como paralisado, assombrado, com os olhos fitos no sol. Depois vi-o tremer dos pés à cabeça e, levantando as mãos ao Céu, caiu de joelhos na lama, gritando: “Nossa Senhora! Nossa Senhora!”» 16

Quando o sol retornou ao seu lugar, e todos perceberam que não havia perigo, foi uma ação de graças coletiva: – Milagre! Milagre! Bendita seja Nossa Senhora!

Conversões espantosas ocorreram, como a do jovem rico que fora com a mãe. Ela, voltando para o carro onde o deixara, perguntou-lhe:

– Meu filho, ainda duvidas da existência de Deus?

– Não, minha mãe – respondeu-lhe o jovem com os olhos marejados de lágrimas. – Não, agora é impossível.

Um sujeito de barbas brancas, de Santarém, apostrofava contra os ateus: – Há ou não há sobrenatural? E a Lúcia, que subira nos ombros de um jovem advogado que viera lhe ajudar a deixar a Cova da Iria, gritava para o povo, como um pregador numa cátedra: – Penitência! Penitência! Nossa Senhora quer que façam penitência. Se fizerem, a guerra acabará! – Sua atitude enérgica, seu entusiasmo de fogo, calavam fundo. Era como se ouvissem a voz inspirada de um profeta.

Ao fim, enquanto o povo deixava o local cantando o Salve Rainha, via-se aqui e ali, largados pelo caminho, alguns livre-pensadores, confusos, embrutecidos.

E o que escreveu o jornalista Avelino de Almeida, cujas linhas desrespeitosas lemos acima? Após o fenômeno, publicou em “O Século”:

“Aos olhos deslumbrados daquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o sol tremeu, o sol teve nunca vistos movimentos bruscos, fora de todas as leis cósmicas – o sol bailou, segundo a típica expressão dos camponeses.”

Não foi o único jornal a relatar os acontecimentos. Lemos em “O Dia” as seguintes linhas, publicadas em 19 de Outubro de 1917:

“…o sol prateado, envolvido na mesma leveza cinzenta de gaze, viu-se rodar e girar em volta do círculo das nuvens afastadas! Foi um grito só em todas as bocas; caíram de joelhos na terra encharcada os milhares de criaturas de Deus que a fé levantava até ao Céu!”

O célebre Dr. Almeida Garrett, catedrático e escritor, esteve presente no dia e deixou narrado o que viu:

“Maravilhoso é que, durante longo tempo, se pudesse fixar o astro, labareda de luz e brasa de calor, sem uma dor nos olhos, sem um deslumbramento na retina que cegasse. Este fenômeno, com duas breves interrupções, em que o sol bravio arremessou os seus raios mais coruscantes e refulgentes, e que obrigaram a desviar o olhar, devia ter durado cerca de dez minutos. Este disco tinha a vertigem do movimento. Não era a cintilação de um astro em plena vida. Girava sobre si mesmo numa velocidade arrebatada.

“De repente ouve-se um clamor, como que um grito de angústia de todo aquele povo. O sol, conservando a celeridade da sua rotação, destaca-se do firmamento e, sangüíneo, avança sobre a terra, ameaçando esmagar-nos com o peso da sua ígnea e ingente mó. São segundos de impressão terrífica.”

 

_________Continua amanhã …

 

 

________________
1.Francisco de Fátima, Fernando Leite S. J., p. 11.
2.Memórias de Fátima, 2a. Memória, p. 88.
3.Memórias da Irmã Lúcia, 4a. memória, p. 169.
4.Podemos nos indagar se essa misteriosa gradação não corresponderia à vocação particular de cada um. Francisco, o contemplativo, via apenas; Jacinta além de ver, ouviu do anjo e, depois, da Virgem o apelo de reparação para a conversão dos pecadores; e Lúcia, que falava, terá a missão de comunicar ao mundo os pedidos do Céu e pregar a devoção ao Imaculado Coração de Maria.
5.Daí em diante, o terço seria o companheiro inseparável de Francisco. “O meu irmão Francisco era inocente e piedoso”, falou João Marto, irmão do pastorinho de Fátima, “Diz a Lúcia que rezava muitos terços enquanto andava com o gado no monte. Isso não posso afirmar porque não vi. O que posso garantir é que em casa só queria rezar terços. Até digo com vergonha que fugia dele para me ver livre de tanto terço! À noite não nos largava enquanto o não rezássemos”.
6.O Irmão François de Marie des Anges faz uma observação importante: em algumas versões lê-se que Nossa Senhora pediu para se rezar o Rosário; outras dizem que foi o terço. Qual a verdade? Ora, anos mais tarde, Lúcia entrará num convento na Espanha, país em que se utiliza a palavra Rosario indiscriminadamente para significar tanto o terço como o Rosário propriamente dito. Essa é a origem da confusão. Lúcia esclarecerá posteriormente que Nossa Senhora se referia ao Terço.
7.Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, Editora Missões Consolata, Fátima, p. 49.
8.“Creio que esta promessa não é para mim só, mas para todas as almas que queiram se refugiar no Coração da nossa Mãe do Céu e se deixar conduzir pelos caminhos traçados por ela. Parece-me que estas também são as intenções do Coração Imaculado de Maria: fazer brilhar nas almas sempre mais este raio de luz, mostrar-lhes sempre mais este porto de salvação, sempre prestes a acolher todos os náufragos deste mundo.” (Carta de 14 de abril de 1945.) Citado em Soeur Lucie, confidente du Coeur Immaculé de Marie, Ir. François Marie des Anges, CRC.
9.Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, Editora Missões Consolata, Fátima, p. 80.
10.A “luz desconhecida” ocorreu na noite de 25 para 26 de janeiro de 1938, quando uma aurora boreal de amplitude extraordinária foi vista na Europa (da Noruega a Portugal), mas também no Norte da África, Canadá, América e México. Irmã Lúcia, que contemplava o céu com as irmãs do convento, sabia que essa era a luz que Nossa Senhora mencionara anos antes. – É impressionante constatar que, anos depois, num dia 25 de janeiro, aniversário do “grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo”, foi anunciado o Concílio Vaticano II.
11.Memórias da Irmã Lúcia, 4a. memória, p. 178.
12. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, cap. XVIII, p. 115.
13. Nossa Senhora de Fátima, William Thomas Walsh, Ed. Quadrante, p. 161.

14. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, cap. XXIII, p. 156.

15. Ibidem, p. 175.

16. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, p. 176.

 

 

(Fonte: Capela Santo Agostinho)

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